quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Para Venda




Título: O Pacto da Meia Noite
Autor: David Whitley
Editora: Editorial Presença,
Colecção Via Láctea, nº 87, Julho de 2010
Tradução: Jaime Araújo

Aviso:
Tudo se vende.

Agora, cidade oculta, secreta e fechada, rodeada por uma muralha, de onde ninguém entra e ninguém sai. Tem a sua ordem e doze distritos que se dividem com a nomenclatura temática dos signos do Zodiaco. É uma utopia baseada no ideal de que tudo pode ser comprado ou vendido mas sem que o dinheiro seja o principal meio. Nem existe o conceito ou a presença física de dinheiro. Vendem-se bens, pessoas, pensamentos, ideias, emoções… imagine-se trocar o sentimento de raiva, ficando completamente oco dele e conseguir-se comprar uma casa por exemplo. Por outro lado até completarem doze anos as crianças também são universalmente consideradas mercadoria.
O capitalismo levado ao seu extremo o onde a reputação demarca o valor de uma pessoa. Quem vende demasiado de si pode acabar nas ruas, vazio, sem emoções desejos ou pensamentos. Mas e daí?
A história começa com o encontro e confronto de um rapaz, Mark, comprado e criado pelo maior astrólogo da cidade, eventualmente tomando-lhe o lugar e Lily uma rapariga do extremo oposto que cria um asilo para aqueles que tudo de si perderam e morreriam esquecidos.
Desejam coisas opostas.
Mark acredita firmemente na utopia onde vive, não desejando abandonar o seu posto, o seu conforto e estatuto. Lily vê a cidade pela distopia em que se tornou e ao ver que nada consegue fazer pelos que vivem no interior das muralhas nada mais quer do que abandonar Agora.
Infelizmente ambos os desejos aparentemente fazem parte do plano do Director.

Sabine

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A fera amansada

Beethoven, eyeliner, chapéu de coco, ganchos e olhos - alguns dos conceitos que emergirão automaticamente a quem ouvir a expressão "Laranja Mecânica". Isto se não for um aficionado do "desporto-rei" e se recordar de imediato do Van Basten, do Van Der Vaart, do Van Nistelrooy e doutros Van qualquer coisa.
Não nos dispersemos. Os conceitos acima referidos fixaram-se nas nossas retinas devido à obra de Stanley Kubrick de 1971. Apresentando: Alexander De Large... 


Eu arriscaria dizer que A Laranja Mecânica é um daqueles casos em que o filme superou o livro em termos de reconhecimento público. Sem desprimor para a obra de Anthony Burgess, de leitura obrigatória para quem se quer aventurar pelos meandros da literatura distópica. É certo que a linguagem poderá criar algumas resistências. Burgess, com rasgos de génio, criou uma linguagem própria para uso das personagens, Nasdat, um misto de inglês, russo e gíria britânica que suscita algumas dificuldades ao leitor e, por outro lado, também deve ser um bicho de sete cabeças para o tradutor. Depois de, nas primeiras edições, ter-se confiado (ou talvez sobrestimado) a agudeza dos leitores, apresentando o texto sem qualquer auxílio à interpretação dos neologismos usados e confiando que o contexto seria suficiente para os decifrar, acabou-se por optar pela apresentação de um glossário, presente não só nas edições inglesas como nas diversas traduções. Pelo menos assim é no exemplar em que li, pela primeira vez, a obra de Burgess, um bem velhinho das Edições 70. No ano passado, comemorando os 50 anos da edição original, a Objectiva lançou uma nova edição com extras, linguagem "DVDiana" à parte.


Para quem está à espera de uma leitura tranquila e sem necessidade de grande esforço, é melhor avisar que o Nasdat está omnipresente ao longo de todo o texto, ou não fosse a narrativa contada na primeira pessoa pelo protagonista, Alex, o mau selvagem, A-lex, o sem-lei, líder dos Droogs, um gang de adolescentes que se entretêm a espalhar a violência e o terror pelas ruas de Londres, depois de uns copos de leite temperado com moloko, uma espécie de droga que faz emergir os instintos mais primários dos consumidores. Mas Alex não é apenas um animal violento. Burgess incute-lhe um certo requinte, expresso, em particular, no gosto por música clássica. Beethoven, o favorito. 
Anthony Burgess apresenta assim uma perspectiva pouco optimista da humanidade. O homem, quando despido dos limites colocados pela civilidade, é um animal feroz, violento, insaciável na busca do prazer que retira da humilhação e da dizimação do outro.
Porém, não é nas noites a ferro e fogo dos Droogs onde se encontra o cerne da visão distópica patente em A Laranja Mecânica, mas sim quando Alex, detido pela polícia, é convencido a experimentar um novo remédio para a violência, o método Ludovico. Obrigado a assistir a cenas ultraviolentas, sob o efeito de drogas e ouvindo incessantemente a sua tão amada música clássica, que se lhe torna a partir de então repugnante, o método Ludovico (inspirado em Pavlov?) faz com que Alex passe a associar a violência e o sexo, em A Laranja Mecânica sempre de mãos dadas, à dor. Qualquer tentativa ou simples pensamento que induza a uma recaída é retraído por um sofrimento profundo.
O reverso da moeda: Alex torna-se completamente indefeso. A narrativa sobre a sua vida após a saída da prisão não deixa de encontrar paralelo no chorrilho de desgraças do Cândido de Voltaire, em A Laranja Mecânica incomparavelmente mais negras, sendo que Alex não é um Cândido conformista mas sim uma vítima em constante sofrimento, o qual culminará numa resolução drástica. Mas a história não acaba aqui. E não adianto mais.
Burgess questiona em A Laranja Mecânica se é legítimo a uma entidade soberana o acto de condicionar os instintos dos indivíduos em prol de uma sociedade pacífica e dócil, despojando-os do que é perturbador desse ideal maior mas, que, por outro lado, lhes é inerente e confere individualidade. Em suma, a paz justifica a eliminação do livre-arbítrio? Se sim, o que sucede? Laranjas mecânicas, pois.
A. Zamperini

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Lá do alto

Quando, perante o ritmo linear e inerte do encadeamento dos acontecimentos, o homem sente o absurdo visceral do caminho da evolução, a fluidez do tempo reinventa-se, erguendo-se numa alternativa, espelhando-se numa outra temporalidade. Perante o esgotamento do ritmo da humanidade, o compasso enlaça um novo paradigma, uma nova historicidade: o clássico abismo aristotélico entre poesia e história é abalado, unindo-se num jogo de sombras onde a realidade reencontra a narrativa, ludibriando a torrente de acontecimentos com a subjectividade íntima da relação do eu com o outro. O peso da maldição da história cai sobre si mesmo e, lá do alto, surge uma verdade que muda o rumo de todos os acontecimentos, entrelaçando passado, presente e futuro com o peso da escolha de uma outra idade.

Título: O Homem do Castelo Alto
Autor: Philip K. Dick
Editora: Saída de Emergência (Outubro de 2010)
Páginas: 288

O Homem do Castelo Alto apresenta-nos um universo distópico, no qual as forças do Eixo saíram vitoriosas da Segunda Guerra Mundial. Em 1962, 17 anos após o conflito, o planeta encontra-se dividido entre duas superpotências: o Japão e a Alemanha. Os ideais do mundo que conhecemos ruíram, dando lugar a uma nova realidade, legitimada por uma história, por toda uma nova ordem social (uma hierarquia de categorias) e uma teia de costumes enraizada neste plano alternativo. As experiências nazis prosseguiram, dizimando raças, impondo o seu império, criando uma Guerra Fria com a parte Japonesa, tolerando-a pela sua preciosa ajuda através do massacre que determinou a divisão do mundo: o sucesso de Pearl Harbor. Neste mundo novo, o avanço da tecnologia diverge da marcha que conhecemos (a televisão, por exemplo, aparece depois de o homem explorar outros planetas), sendo mais valorizado o artefacto raro do que a produção em massa (condenada pelo seu carácter banal, desprovido de historicidade). Neste sentido, a criação de objectos novos e autênticos é vista como uma banalidade, desprovida do peso da história, em desarmonia com o universo, sendo a sua concretização percepcionada como um momento de ruptura do paradigma: é neste ponto que o espírito humano se separa da ordem estabelecida para respirar a sua «verdade interior». Este dom da criação é, para mim, o grito de liberdade deste livro, onde a vida das personagens se encontra enlaçada com as directrizes do I Ching, o oráculo chinês, seguido por todos para solucionar todos os problemas. Na verdade, apesar da estruturação estanque da mentalidade do regime ditatorial, o ser humano rege-se por profecias e ensinamentos subjectivos; este é o ponto nevrálgico de todo este universo: o percurso da história é estanque, mas é fonte de interpretação, sendo a liberdade daqueles que o seguem uma raridade ambígua  ̶  os acontecimentos desenlaçam-se, mas são filtrados pela subjectividade humana, sendo recriados. Mas, sê-lo-ão na totalidade? Quais os limites que circunscrevem a história?
Enredados nesta teia de acontecimentos, conhecemos várias personagens: Robert Childan, proprietário de uma loja de Antiguidades Americanas, que, conformado à sua categoria e subjugado à supremacia japonesa, explora o valor do raro; Tagomi, um japonês com um alto cargo, seu principal cliente, que, após assassinar dois agentes policiais, coloca tudo em dúvida na loucura da melancolia; Mr. Baynes, um agente alemão infiltrado que quer avisar Tagomi de um futuro atentado nuclear no Japão; Frank Frink, um judeu que, inicialmente trabalhando na produção massificada de imitação de artefactos, se arrisca na criação de peças de ourivesaria e Juliana Frink, sua ex-mulher, que se envolve com Joe Cinnadella, um agente contratado para assassinar a voz da semente da dúvida que enlaça todas estas personagens num caminho comum: o homem do castelo alto, escritor de um livro que narra uma história alternativa, onde os aliados venceram a Guerra, intitulado O Gafanhoto Será Um Fardo. A escolha deste título é uma alusão a uma passagem bíblica sobre a velhice, a última das idades, onde a vivência da existência ganha novos contornos e aquilo que outrora parecera fraco e insignificante se torna uma evidência gigante: o sistema conhecido até então é abalado pela dúvida, caindo todos os paradigmas em ruína. Este livro dentro do livro (escrito por um livro, o I Ching) constitui esse grito de mudança. É por isto que o homem do castelo alto, aquele que interpreta, que lê entre as linhas, é o maior inimigo do conformismo estanque que corrói a existência humana.

Apesar do oráculo chinês parecer desprover as personagens da sua autonomia, abre-as à possibilidade de interpretação e, consequentemente, de criação. De facto, Philip K. Dick dotou todas as suas personagens de uma autonomia moral inacreditável, que é experienciada por uma série de decisões particulares que asfixiam as directrizes da maioria predominante e ditatorial: elas escolhem a sua história, recriando-a. A historicidade é assim analisada como um conjunto de acontecimentos, cuja fluidez não é estanque, mas diversa, vista e criada pela subjectividade humana, que, ao interpretá-la, evidencia a possibilidade da alternativa, filtrando o eu num outro, num espaço-tempo sem lugar nem idade, na fronteira entre a verdade e a mentira.

K. Dalloway

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A Grande Invasão

Sinceramente, não faço a mínima ideia do que se está a passar neste mundo. Não quero com isto iniciar uma discussão profunda sobre a falta de bom senso geral - não apenas nacional - ou sobre o estado das finanças e política do país ou mesmo sobre religião. E acreditem, se abrisse a boca sobre esses assuntos, tinham que tomar café durante uma semana só para não sentirem a ressaca de me ouvir falar. Não, o que eu quero dizer é que não consigo perceber a reviravolta no mundo da literatura que se tem vindo a dar e da qual - para grande vergonha minha, admito - me apercebi apenas no início do ano passado.
Tudo começou com o famoso clássico distopico mais lightJurassic Park de Spielberg e atingiu o auge com James Cameron e a sua última bomba de efeitos especiais, Avatar. Não vos vou contar a história, até porque acho que já toda a gente ouviu falar dos homens e mulheres azuis com riscas brancas e uma das caudas mais esquisitas desde o Star Wars, mas depois da sua estreia parece que um tsunami de, primeiro nostalgia (muito estranho), e depois distopia inundou os cerebros da espécie homo sapiens sapiens. Começou a surgir uma nova procura por temas relacionados com o fim-do-mundo, futurismos (se é que tal palavrão existe) e Atlânticas. Certamente que tendo lido todas as críticas colocadas neste blog até hoje vos revelaram que não escolhemos este tema por acaso.
No entanto, não é apenas na literatura que nos afogamos em distopia. Ano após ano temos sido bombardeados com Terra Novas, Walking Dead e outras muitas series e filmes sobre o tema. A mais recente entrada neste universo é o After Earth, que muitos já devem ter visto na tela. A história de como um rapaz aprende a lidar com o sentimento mais instintivo de todos: o medo.
Seja como for, talvez seja tudo fruto da minha imaginação e esteja a ver coisas. Mas que aqui há um gato distópico (ou com uma máquina do futuro), há.

Austen

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O Ladrão da Tempestade



Título: O Ladrão da Tempestade
Autor: Chris Wooding
Editora: Editorial Presença,
Colecção Via Láctea, nº 70, Fevereiro de 2009
Tradução: Miguel Romeira

Aviso:
A união de várias frases e pistas são suficiente para nos deixar bastante enojados com a possibilidade de a humanidade ser de facto capaz de executar tal visão. E estou a falar de náuseas.
Em relação à comida…
Como ver o Sweeney Todd e olhar de lado para empadas durante uma semana.

A cidade-ilha de Orokos foi criada sob a bandeira de a utopia justifica os meios.
O Protectorado criou a cidade com o objectivo de produzir uma sociedade perfeita. Considerando o tema deste mês escusado será dizer que falharam miseravelmente. A tecnologia que suporta a cidade falhou, criando as Tempestades de Probabilidade, um fenómeno que consegue distorcer a própria realidade, criando aberrações e caos. Mas as tempestades são apenas um sinal de falha técnica. Todo o livro poderia ser apenas um cenário pós-apocalíptico se a Tempestade fosse o único problema com que o mundo/cidade se depara.

O que cria a distopia é todo o sistema de Orokos:
·         O governo totalitário encimado por um homem sem rosto cuja propaganda proclama imortal;
·         Onde nem mesmo as classes sociais elevadas (geralmente imunes ou a origem de todo o problema na maior parte das ficções distópicas) conseguem manter a sua liberdade perante o Protectorado. A cada ano que passa perdem mais terreno, direitos e privilégios; E as tempestades não poupam ninguém;
·         Os níveis inferiores são favelas onde os seus habitantes são tatuados como animais para facilmente serem identificados como criminoso (desde nascença);
·         É-lhes negada qualquer possibilidade de ter emprego ou conseguir ascender socialmente pelo que realmente não têm outra hipótese a não ser tornar-se criminosos;
·         Qualquer habitante das favelas pode ser levado quando os guardas assim o acham para simplesmente desaparecerem; (e o que lhes acontece… bleh. Mas é para o bem da cidade. O protectorado cuida até dos seus criminosos.)
·         As aberrações criadas pelas tempestades e a própria tempestade não poupam ninguém. Por outro lado a propaganda mostra “O Ladrão da Tempestade” como uma forma de controlo criada pelo Protectorado; As aberrações são empurradas para as favelas onde quem morre não tem interesse;
·         E para aqueles que tentam fugir há sentinelas, robots armados com serras, que matam sem questão qualquer um que tente aventurar-se pelo mar, para lá das fronteiras, para um mundo que ninguém sabe se existe. O Protectorado diz que não. Não há nada para além de Orokos e mar.


Tudo o que o Protectorado faz é para vosso bem.

Rail e Moa, dois adolescentes das favelas empregados por uma das líderes de gangues da sua área encontram um artefacto da era antes de Orokos e um golem (robot de natureza mágica/cientifica arquitectado para ser o soldado perfeito) que possui um pássaro morto, que se perdeu e alcançou a cidade, morto pelas sentinelas, uma prova de que existe realmente algo para lá do mar. E Moa decide que tem de haver algo para lá da cidade, daquela vida, arrastando Rail na sua busca por liberdade.
A história revolve dos que tentam escapar, perseguidos por causa do artefacto, uma vez que a presença dos robots nas fronteiras mantêm uma atitude de indiferença para com aqueles que tentam sair (tradução: menos bocas para alimentar), e do Protectorado que luta por manter a ordem na cidade cada vez mais quebrada e caótica.

Há um facto interessante acerca desta distopia.
Quando a história decorre ninguém acredita que seja uma utopia, nem mesmo o Protectorado que preserva os valores que fundaram Orokos e os mantem a todo o custo. Na sua perspectiva é apenas a única maneira de sobreviver e, quem sabe, assim que conseguirem eliminar as tempestades e as ratazanas nos níveis inferiores talvez se consiga finalmente tornar aquilo que era suposto.

Sabine

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O Livro e o Fogo





Ray Bradbury, Fahrenheit 451, Lisboa, Europa América, 2011.
(Ed. original: Nova Iorque, Ballantine Books, 1953)








O papel arde a 451º Fahrenheit, 233º Celsius. Mas nem tudo é tão fácil assim.

Guy Montag pertence à Vigília do Fogo. Dito doutro modo, Guy Montag é bombeiro, ou melhor, é a antítese do ofício como hoje o conhecemos - ao invés de apagar fogos, este bombeiro, como todos os da Vigília do Fogo, ateia-os. O alvo são os livros. Num futuro não datado, os livros tornaram-se objectos proibidos. Millay, Whitman, Faulkner ardem perfumados a gasolina, um por cada dia da semana. As poucas bibliotecas pessoais sobreviventes são queimadas e, por vezes, danos colaterais, os proprietários também. Os livros são uma ameaça à paz.
"Os negros não gostam de Little Black Sambo. Queimemo-lo. A Cabana do Pai Tomás não agrada aos brancos. Queimemo-lo. Um tipo escreveu um livro sobre o tabaco e o cancro do pulmão? Os fumadores ficam consternados. Queimemos o livro. A serenidade, Montag, a paz, Montag. Liquidemos os problemas, ou melhor ainda, lancemo-los no incinerador."
Lancemos achas ao enredo. Um dia Montag conhece Clarisse, a louca. Ela pergunta-lhe se alguma vez leu os livros que queima. Que ideia?! É proibido. Não, nunca lê. E será Montag feliz - novamente a inquiridora Clarisse. É claro que é feliz, é um bom trabalho. Mas a dúvida fica em Montag. Será ele realmente feliz a queimar livros que nunca lê?
Não nos adiantemos mais. Só é preciso saber que algures nesse mundo há uma comunidade de resistentes - leitores que se tornam livros. Pois quando o fogo devora as páginas, resta a memória. Nessa comunidade, vivem A República, As Viagens de Gulliver, um Eclesiastes. Uma biblioteca de homens-livro.

Livros e fogo, uma relação milenar, de Alexandria ao III Reich. Quem sabe se, num futuro mais ou menos próximo, os livros não voltarão à fogueira. Se a palavra é uma arma, há quem ainda tenha medo do livro e de tudo o que ele encerra - o conhecimento, a liberdade. Atenção: o medo ateia fogueiras.
Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, uma narrativa sobre o poder do livro. Leitura obrigatória para quem julga a literatura, e a cultura em geral, um bem secundário, perfeitamente prescindível quando o dinheiro (que também arderá a 451º Fahrenheit) escasseia e as mesas estão vazias. Nem só de pão vive o homem.

Nota final: Fahrenheit 451 passou, e bem, para o grande ecrã, sob a assinatura de François Truffaut.




A. Zamperini

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley


Enraizado num universo distópico onde a condição humana é moldada pela ilusão de uma felicidade material, a verdade cede o seu lugar perante o contentamento de sobreviver numa letargia química e artificial. O ritmo desmedido do instinto é domado pela dormência de uma abundância translúcida que inunda a mente daqueles que nasceram programados para desistirem de si mesmos. Nesta incubadora, todos os demónios estão adormecidos por drogas que enlaçam aqueles cujo destino já está traçado muito antes de respirarem pela primeira vez, que constituem a maquinaria que permeia esta existência inundada por uma felicidade aparente, que corrói a possibilidade de uma vida sem barreiras.


O Admirável Mundo Novo nasceu como uma resposta à sociedade distópica de 1984, onde a liberdade é aprisionada por uma autoridade austera que sufoca a identidade individual de todos, submersos num universo extremo, permeado de violência. O livro de Orwell mostra a verdadeira perversidade humana, elevando a um extremo este tipo de sociedades ditatoriais. Pelo contrário, aquilo que Huxley insiste em afirmar é que a liberdade humana pode ser (e é) condicionada, desprovida de qualquer valor, pela dormência da felicidade implantada, sem violência: a aniquilação do espírito crítico e o contentamento material conseguem suprimir qualquer necessidade anímica do ser humano. A felicidade em detrimento da sabedoria, o preconceito em detrimento da ciência, a tecnologia em detrimento da arte, o sorriso em detrimento das lágrimas, Ford em detrimento de Deus. Eis os ingredientes necessários para uma sociedade que viva numa paz adormecida.
A história desenrola-se numa sociedade de castas onde cada um nasce artificialmente (através do método Bokanovsky), sendo condicionado desde o embrião para acreditar na verdade e legitimidade do Estado que integra. Um simples processo pode gerar dezenas, e até centenas, de seres humanos, criados para acreditarem em máximas de estabilidade (incutidas através da sua audição inconsciente durante o sono), que ensinam a respeitar a ordem social estratificada e o papel que cada um deve desempenhar. Neste mundo, a tecnologia suprime todas as necessidades humanas, fazendo com que os cidadãos sejam tão felizes e satisfeitos com o seu dia-a-dia que não se questionem. A verdade, assim como tudo, é estandardizada. No caso de o sofrimento e a preocupação invadirem o espírito de alguém, a Soma, uma droga, está sempre disponível para afastar demónios e submergi-los no esquecimento.

Aqui conhecemos Lenina, uma funcionária do Centro de Condicionamento que, apesar de viver segundo os parâmetros do Estado Mundial, quebra algumas barreiras, sendo objecto de desejo de muitos homens, com quem tenta relacionar-se através de frívolas e superficiais relações sexuais (uma das condutas apoiadas pelo Estado). Numa das suas aventuras com Bernard Marx (alusão a Karl Marx), um alfa com um sentido de inferioridade acentuado, submerso em melancolia que o faz colocar em causa alguns preconceitos do seu modo de vida, conhece um selvagem, John, um homem que não fora criado num laboratório de produção em massa, mas gerado por uma mulher, tendo crescido fora dos limites impostos pelo Estado, com a sua mãe, Linda (uma blasfémia perante os olhos da sociedade). Longe do condicionamento social, John representa o Bom Selvagem, o ser humano sem o peso da civilização, sem os limites e barreiras esmagadoras impostas pelo progresso. Num mundo à parte, descobriu a obra de Shakespeare e vive imbuído pela sua arte, imerso numa ilusão diferente, que o levará à paixão por Lenina, cego não pelos preconceitos da sociedade, mas pela ideia surreal do amor poético. Não estando integrado na sua tribo, pede aos viajantes para o levarem com a sua mãe para o Estado Mundial, esse Admirável Mundo Novo. Contudo, com a sua chegada, esse ideal almejado e o desejo de sentido de pertença desmoronam-se perante uma sociedade baseada na ilusão de uma felicidade material, desprovida de um Deus (substituído por Ford, o pai da industrialização), onde a doença, a velhice e o sofrimento não existem, mas também não cedem lugar à liberdade da existência humana.  
Reclamando o seu direito ao sofrimento, após ter perdido a mãe e sufocado a ilusão amorosa, John inicia o seu caminho para a libertação, para o despertar do sono profundo da sociedade. Contudo, enfrentará ventos contrários que se irão esforçar por domar o seu espírito, despedaçando a agulha da sua bússola. 

Conseguirá ele restaurá-la?
Conseguiremos nós?

K. Dalloway

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Os Jogos da Fome



Título Original: The Hunger Games

          Autor: Suzanne Collins


Editora: Editorial Presença

Páginas: 256



Situado num futuro distópico Os Jogos da Fome descreve um cenário bastante sombrio do mundo, seja de um ponto de vista social, económico ou político. Em suma, é um grande pesadelo onde uma elite rica se sustenta por detrás de uma população faminta. Enquanto isso, a perversidade e o voyeurismo dos media são levados ao extremo e usados pelo governo como uma forma manter intacta a ordem social.

A história ocorre num contexto que vai impressionantemente ao encontro das descrições da Nova Ordem Mundial, planeada pela elite global de hoje. Uma das principais características desta ordem, é a dissolução dos estados, formando um governo único mundial, que é governado por um poder central, chamado de Capital. A elite governamental utiliza a tecnologia, como chips RFID, hologramas 3D e câmaras de vigilância, para vigiar e criar uma opressão e divisão nas classes sociais. Grande parte da população vive em condições de terceiro mundo, estando sujeitos à fome, pobreza e doença. Isto é resultado de um acontecimento devastador que gerou um colapso económico que levou a criação de um governo de ditadura.

«Os jogos da fome» foram criados com o propósito de lembrar as massas o preço a pagar por uma rebelião. Cada distrito oferece um rapaz e uma rapariga (intitulados tributos) que irão lutar ate à morte nos jogos, estes são transmitidos para toda a população. Os jogos são transmitidos à nação, sob a forma de um reality show completo, com os anfitriões de TV que analisam a acção, entrevistam os «tributos» e julgam a sua performance. As massas também participam activamente no evento, torcendo pelos seus representantes distritais, apesar de todo o evento celebrar o seu próprio sacrifício. Isto reflecte um facto triste, mas esta é a verdade sobre os meios de comunicação: qualquer tipo de mensagem pode chegar às pessoas, se conseguir captar o seu interesse.

Este livro explora o lado cruel do ser humano. Para nós é considerado uma descrição de uma sociedade distópica, mas se o leitor pensar bem esta realidade já existiu. No Império Romano gladiadores lutavam até a morte enquanto uma audiência aplaudia; na Idade Média os enforcamentos e decapitações era uma forma de entretenimento; e por fim a Inquisição trouxe as torturas barbaras e fogueiras. Em todas estas épocas as pessoas vivam no medo de serem apanhadas e condenadas, mas sempre houve quem lutasse por um mundo melhor. 

Os Jogos da Fome ocorrem num mundo que é exactamente o que é descrito como a Nova Ordem Mundial: uma elite rica e poderosa, uma população explorada e embrutecida, a dissolução da democracia, a força policial, a vigilância de alta tecnologia, os meios de comunicação utilizados para propaganda e um monte de rituais de sangue. Não há, de facto, nada de optimista no futuro distópico descrito nesta obra. Até mesmo a dignidade humana seria revogada, visto que as massas são forçadas a assistir à morte uns dos outros, como se fossem animais enjaulados.
Winter