segunda-feira, 24 de junho de 2013

Memórias de Adriano

Este ano, devido a problemas pessoais que mais vale não serem discutidos para não adormecer ninguém, não tive grande oportunidade de ir à Feira do Livro no Parque Eduardo VII. Na verdade, não tive tempo para nada, mas isto tudo para dizer que só pude ir uma vez. Não foi um dia muito proveitoso: o tempo estava solarengo mas abafado, andei sempre a correr, passei por bancas ou atafulhadas de gente ou completamente desertas, ambos os lados do parque completamente impedidos a qualquer peão que ousasse tentar a sua sorte e entrar no mar de livros, sessões de autógrafos, farturas (sim, porque a feira é para esfomeados no geral, não só por Literatura) bancas de comida para gato (por alguma razão!) e tudo isto sem conseguir encontrar um livro que me chama-se a atenção que já não tivesse.
Por sorte, não estava sozinha. Minutos antes tinha-me encontrado com um amigo já dos tempos do liceu que, talvez por monotonia, decidiu vir comigo. Foi o que me valeu. Passadas umas horas vimo-nos na zona dos alfarrabistas. Ele estava à procura de um livro para uma colega da faculdade (lamento, mas se nunca os lí, os títulos e autores falham-me) e encontramos um exemplar das Memórias de Adriano entre a poeira. Não que esta obra seja muito antiga. Esta edição foi publicada em Janeiro de 2005. Mas talvez por Yourcenar não ser um nome que soe no nosso quotidiano, caiu como muitos dos seus pares no esquecimento.
Ele tinha-o lido. E adorado. Mas avisou-me logo que, e passo a citar, "envelhece-te mil anos". Não é muito de estranhar. Afinal, Adriano viveu há quase mil anos (nasceu em 76 d.C.), mas para os leigos de História Romana (como é o meu caso), o nome do imperador é apenas um nome utilizado num franchising antiquado de termas e muralhas romanas que proliferaram na Europa no seu reinado. Seja como for, comprei o livro - custou-me 5€, imaginem - para ver se criava algumas rugas. Ainda não o acabei, e talvez por isso ainda não ande de bengala, apesar de já sentir dores nas costas. No entanto, o livro tem-me surpreendido.
Memórias de Adriano conta a biografia de um imperador romano oriundo de então Hispania, que estudou a Filosofia grega, que se tornou soldado elevando-se ao posto de Governador da Síria e cuja culminou na sua ascensão a Imperador do Império Romano. Humanista e Philhellene, é actualmente considerado pela História  o terceiro dos Cinco Bons Imperadores. As suas obras, como já mencionei, estão espalhadas por toda a Europa, chegando ao Norte de Africa e mesmo à Ásia. Mas o facto de a personagem principal ser uma das figuras mais importantes e amadas da história (até porque as personagens mais interessantes são as menos amadas) não é a razão pela qual considero este livro bom, e sim a própria forma como está escrito.
É a primeira vez na minha vida em que leio uma biografia escrita na primeira pessoa deste. Dirão que existem muitas escritas da mesma forma, e eu própria já me deparei com vários diários fictícios (ver, por exemplo, o post sobre O Diário Secreto de Maria Antonieta) mas esta tem uma grande diferença que, a meu ver, altera toda a natureza da obra e capta a atenção do leitor: trata-se de um monólogo. Nesta obra não há qualquer tipo de diálogo entre a personagem principal/narrador e as outras personagens. Todo o livro é uma extensa carta ao sucessor de Adriano, Marco, escrita pressupostamente pela sua própria mão como contributo à sua educação. A forma simplicista, austera, e contudo graciosa e magestosa de relatar o passado, capta o leitor desde a primeira página e (tenho a certeza apesar de ainda não estar acabado) até à última.
Este é mesmo um livro que nos envelhece mil anos. Mas a idade avançada provém da experiência que o leitor acaba por sentir no papel de Adriano. Pois esse é o grande poder destas suas Memórias.

Austen

O Verde e o Amarelo

O Brasil ferve (em pouca água, segundo entende alguma imprensa iludida com o "milagre económico"). 
Num momento em que tantos caminham contra o vento, sem lenço nem documento, como diria Caetano, resolvi dedicar este bocadinho a uma introdução à literatura brasileira, ou melhor, à forma como a literatura brasileira me foi introduzida. Não foi em prosa, mas em verso. Nem pelos livros, mas sim pelas canções. O meu cicerone: Chico Buarque de Holanda.
Não obstante a sólida carreira como dramaturgo e romancista, de que se destacam títulos como Ópera do Malandro (1978), Budapeste (2003) ou Leite Derramado (2009), é na poesia que a obra de Chico Buarque encontrou e continua a encontrar o seu porto, numa voz cadenciada, quase frágil, irremediavelmente humana.
É de Buarque uma das mais belas canções (a mais bela letra, sem dúvida) da Música Popular Brasileira. 


"Construção"

Mas não nos fiquemos na construção.
A crítica a uma sociedade focada no capital e no indivíduo, a sensibilidade em encontrar o Outro feminino, a ponte entre o popular e o erudito - estas e outras dimensões emanam da obra de Buarque. Mais do que tudo, há esse dom em encontrar a universalidade do que é humano, de ser capaz de servir de mote a momentos da vida de cada um. 
Tudo parece mais elevado (e trágico também) na voz de Buarque. Até uma relação condenada ao fracasso. Vejamos...

1. Primeiro, a paixão.

 
"O meu amor"

2. O quotidiano instala-se e aborrece.

"Cotidiano"

3. Talvez seja melhor terminar tudo. Mas dói.


"Eu te amo"

4. E, finalmente, tudo acaba com a leve impressão de que já se vai tarde.

"Trocando em miúdos"

Trocando em miúdos, a literatura não está só nos livros. Também chega ao som do violão.

A. Zamperini 

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Eco do Monólogo


Título: Desespero
Autor: Vladimir Nabokov
Editora: Teorema
Páginas: 234

Que é o desespero se não uma distorção da nossa relação connosco próprios? Uma falha de ligação, uma deflexão inconsciente na escolha do inverosímil. É através da construção de uma realidade imbuída de incerteza e engano que o autor conversa connosco, ludibriando-nos, mostrando-nos que a aparente unicidade se desdobra por diferentes, e ilimitados, caminhos. Existimos revendo-nos no outro, criando e destruindo, «pois a invenção da arte contém muito mais verdade intrínseca do que a realidade da vida».



É hilariante a forma como submergimos totalmente no universo criado por Nabokov, focando totalmente a nossa atenção nas palavras do narrador, como se este se nos estivesse a dirigir, contando-nos os seus planos e segredos mais profundos. Há uma intimidade tão desvelada que nos sentimos ofendidos quando percebemos que estamos a ser ludibriados, manipulados pelas contradições do próprio autor. Fomos avisados logo de início, mas a consumação da mentira é o método perfeito para vislumbrarmos o mundo dúplice pelos olhos da demência que permeia todo o livro.
O narrador é Hermann, um magnata do chocolate, que encontra o seu duplo num sem-abrigo em Praga, Félix. Toda a história gira em torno do plano de Hermann em trocar de identidade com Félix, aproveitando-se da ingenuidade deste para o ludibriar, acabando por assassiná-lo para receber o seu próprio seguro de vida, roubando a identidade do vagabundo, desconhecida por todos. Hermann é casado com Lydia, a típica mulher vã e fútil, facilmente perturbável, que acolhe o seu primo pintor, Ardalion (com quem parece ter uma relação que ultrapassa os laços familiares e a do mecenato). O protagonista vive num mundo abastado, orquestrado por obrigações, mas em eminente declínio devido a problemas financeiros. É assim que vê a oportunidade de enveredar por uma vida mais livre através da manipulação do seu duplo, querendo transformar-se num outro, transfigurando toda a realidade que conhecia até então através do seu plano, premeditando até o acaso.
O plano desenrola-se e nós embarcamos nele, imbuídos de desconfiança em relação aos relatos até à última página, sempre sem saber o que é mentira e o que é verdade, perdendo-nos na multiplicidade de hipóteses que se desvelam perante o nosso olhar passivo, também ele querendo saltar para a corrente de acontecimentos para recriar a realidade, transfigurando-a em arte. Tudo desvanece perante a evidência… será Félix o duplo de Hermann? É possível encontrarmos o nosso duplo ou é ele uma mera criação nossa, produto da transfiguração do reflexo? Irá Hermann alcançar a realidade criada por ele?
O importante, acredito, é aceitar essa falha na nossa ligação connosco próprios. Afinal, a existência só se concretiza se ambicionamos por ela: «Mentia como o rouxinol canta, extasiado, esquecido de mim; regalava-me com a nova harmonia da vida que ia criando.»


K. Dalloway

domingo, 16 de junho de 2013

D. Maria I - A Vida Notável de Uma Rainha Louca



Título Original: The Madness of Queen Maria

                     Autor: Jenifer Roberts

Editora: Casa das Letras

Páginas: 244


D. Maria I foi a primeira rainha portuguesa. Nasceu na maior corte da Europa, pois Portugal era, nesta época, conhecido pela sua opulência e riquezas provenientes do Brasil.
Este livro conta a história de uma mulher profundamente religiosa e supersticiosa ( o que lhe valeu o cognome de Piedosa ou Pia)  que viveu momentos importantes da história de Portugal, como o terramoto de 1755. Apesar de D. Maria não ter tido uma instrução adequada para se tornar governante, esta teve alguma compreensão pelo seu povo tendo sido bastante humanitária a tomar algumas decisões de Estado.  A autora escreve uma biografia que pode ser lida como um romance histórico. Há uma descrição detalhada do dia-a-dia da corte, dos protocolos reais e da vida pessoal dos membros da corte.
Após vários acontecimentos dramáticos D. Maria adoece e seu filho D. José torna-se regente e a família, com medo das invasões francesas, muda se para o Brasil onde D. Maria, devido a sua doença mental, morre longe do país que a viu nascer.
Por incrível que pareça a autora desta magnífica biografia é Jenifer Roberts, uma escritora inglesa, que ao pesquisar a vida de William Stephens, fundador da fábrica de vidros na Marinha Grande, descobriu numa pequena biblioteca em Inglaterra uma carta onde são descritos os preparativos para a visita de D. Maria I à Marinha Grande no ano de 1788. Jenifer apaixonou-se por esta rainha e em 2009 publicou em Inglaterra esta obra que merece ser lida.

Winter


quinta-feira, 13 de junho de 2013

O Peso do Livro


Recentemente precisei de viajar. 

Não foi longe e passei apenas por alguns dias fora mas é raro viajar sem pelo menos um livro na mala ou o bookeen (um pequeno e-reader). E uma viagem sem entretenimento torna-se um tédio. Vai-se sempre armada e prevenida com vários mundos à disposição. Pelo menos este é o meu caso e as marcas nos meus ombros provam a minha preferência. 
O peso dos três livros que escolhi acrescentam-se à bagagem e ao longo do percurso para alcançar o sítio onde se tem de ficar acaba por se tornar brutal. Acrescenta-se a isso a falta de acesso aos livros devido à moda que nos impinge malas nas quais um volume que não seja de consumo rápido ou formato de bolso caiba, forçando-nos a deixar os livros na bagageira, armazenados com roupas e necessaire. Não é que siga a moda atentamente. Simplesmente não se vai encontrar nada de diferente a não ser que se esteja disposto a gastar extra com compras online.
De regresso à questão. O bookeen deixou-me armazenar cerca de oitenta volumes, comprados online ou grátis através do Projecto Guttenberg a acrescentar a uma variedade de clássicos em várias línguas oferecidos na compra do aparelho em si.
Na verdade a minha preferência pelo livro enquanto objecto físico causa-me bastantes problemas em termos de espaço e sim, gostaria de pelo menos ter a possibilidade de os transformar em algo mais fácil de armazenar. Por outro lado ai de quem ameace o meu papel. Por outro lado ainda, não tenho certeza se a minha preferência pela forma física predefinida se deve à habituação e convívio com livros desde criança. Há uma certa relutância em ler a partir de um ecrã plano para a qual não encontro uma origem definida.
Leio. 
Mas não é a minha primeira escolha.

Por falar em escolha… os três livros escolhidos foram a compilação dos contos dos Irmãos Grimm. Apesar de terem cometido o acto questionável* de traduzir os nomes das personagens não deixa de ser um bom trabalho editorial. 
Ainda que na questão dos contos tradicionais possa ser mais compreensível do que numa outra obra em que durante a tradução se decidiu de repente “vamos adaptar”**, devido ao facto de a maior parte das fábulas ser do conhecimento das crianças e bastante imiscuídos no imaginário popular e colectivo. Quer-se uma ligação com aquilo que nos é familiar em termos de nomes. Por outro lado creio que é para isso que existem as adaptações adocicadas.***
Poucos compreenderiam de imediato se de repente a Branca de Neve que conhecem fosse referida como Schneewittchen ou a Cinderela como Aschenputtel (Deram o título de Gata Borralheira e usam-no como nome mas aqui ambos fazem sentido na minha cabeça). São traduções que não me torturam o ouvido o fazem impressão.

Pergunto-me se não é outra vez aquela questão da habituação…

Rapunzel para Rapúncia e Hänsel e Grethel para Joãozinho e Margarida (verdade que criam um compromisso colocando os nomes originais deste conto entre parentes no título e na primeira aparição no texto)… aí já me fica entalado.

Irmãos Grimm
Primeira Edição Integral****
Contos da Infância e do Lar volumes I, II e III
Tradução, Introdução e notas de Teresa Aica Bairos;
Coordenação Científica de Francisco Vaz da Silva;
Revisão de João Pedro Tapada;
Temas e Debates, Círculo de Leitores

* Não mencionando a abominação no Novo Acordo. Mencionada agora mesmo…
** Dando um exemplo da Disney das velhas revistas e das aventuras do Tio Patinhas (Scrooge McDuck) Maga Patológica = Magica DeSpell;
*** Para crianças… mas hoje em dia não se conta como a Madrasta da Cinderela deu uma faca às filhas e lhes disse para cortarem os dedos e calcanhares para conseguirem calçar o dito sapatinho… quem precisa de andar quando se é rainha?... com passarinhos a cantar alegremente: 

Cucurrucu, cucurrucato
Olha o sangue no sapato.
O sapato é pequeno, o pé foi talhado.
A noiva real está à espera noutro lado. 

As irmãs para além de pés cortados também ficam cegas. As pombinhas que cantam o acima mencionado arrancaram-lhes os olhinhos durante o casamento. Adorável.
****Edição Comemorativa do Bicentenário da Primeira Publicação Alemã;


Sabine

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A morte dança

Escrevia há uns dias a mana Austen sobre a adaptação de livros para o grande ecrã. A recente estreia nas salas de The Great Gatsby e a pouca unanimidade que mais uma adaptação do clássico de Scott Fitzgerald reuniu entre a crítica trouxeram à ordem do dia a velha questão de tudo o que se perde do papel para a tela (no caso do filme de Baz Luhrmann, penso que o problema reside no que se ganhou a mais e, sobretudo, demais) e da existência ou não de livros inadaptáveis ao cinema ou, pelo menos, incapazes de ver dignificada na imagem o valor do texto escrito. Não nos esqueçamos, porém, do reverso da moeda - obras literárias menores que deram lugar a grandes clássicos do cinema, como O Padrinho de Francis Ford Copolla (adaptação do livro homónimo de Mario Puzo, que também assina com Copolla o argumento do filme), ou o interminável E Tudo o Vento Levou de Victor Flemming (a partir do romance de Margaret Mitchell).
Mais raros são os grandes livros que dão lugar a grandes filmes. Peçam-me um exemplo que eu tenho um mesmo aqui, debaixo da língua, e, já agora, também empoeirado na prateleira de cima da minha estante. É verdade, não lhe pego há algum tempo. Falo de O Leopardo de Tomasi di Lampedusa, ou melhor, no título original (e porque em italiano tudo soa melhor) Il Gattopardo, magnífico livro que deu lugar a uma autêntica obra-prima do cinema italiano, com realização de Luchino Visconti, corria então o ano de 1963.

Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo,  Lisboa, Teorema, 2007
(ed. original: Feltrineli, 1958) 

O romance de Tomasi di Lampedusa leva-nos até à ilha de Sicília em pleno Risorgimiento e apresenta-nos Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina. Nele, o sangue azul contrasta com o vermelho das camisas dos revolucionários que pintam o chão inóspito. Mas Don Fabrizio é, sobretudo, um observador da mudança, da queda da aristocracia e da emergência de algo novo que, talvez, não seja tão novo assim. "É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma", frase lapidar de Tomasi di Lampedusa, aplicável ao século XIX italiano, aplicável ao século XXI português. 
Mas não nos dispersemos.
Don Fabrizio vê a mudança invadir a sua casa e a sua família pelas mãos do amado sobrinho Tancredi. Ele traz novos valores e novo sangue. Traz a paixão por Garibaldi, volátil, capaz de mudar como quem troca de camisa, literalmente. Traz a paixão por Angélica, a filha do novo-rico Don Calogero, encarnação da burguesia emergente, cuja graciosidade encoberta o berço e a beleza esconde a falta de requinte. Angélica é o novo e, perante o novo, Don Fabrizio, o velho Don Fabrizio, que embora ainda capaz de arrebatar corações femininos, já sente a virilidade vergar-se ao peso dos anos (desculpem a falta de subtileza da imagem), experimenta um misto de retracção e atracção. Angélica expele vida enquanto Don Fabrizio sente a morte a aproximar-se ao mesmo ritmo da Liberdade, Igualdade e Fraternidade da revolução vizinha.
Aliás, se tivéssemos de sintetizar o tema-chave de O Leopardo, ainda mais do que o retrato fiel desse momento de mudança de paradigma social vivido pela Europa de Oitocentos, apontaríamos para uma simples palavra: a morte. Não a morte enquanto fim, mas sim enquanto transformação.
Essa é a leitura que Luchino Visconti soube transmitir para o grande ecrã, tornando o que poderia ser historicamente datado em algo universal. Não é uma adaptação a régua e esquadro do livro. Inclusivamente, difere substancialmente no final - o livro avança no tempo, dando um maior relevo à personagem de Concetta, a filha de Don Fabrizio e última réstia dos Salina. Novamente, sublinho: trata-se de uma interpretação do livro feita por aquele que é um dos grandes mestres do cinema italiano, mestria manifesta a cada plano.


A Don Fabrizio foi dado o corpo, e que corpo, de Burt Lancaster, bem longe da imagem all-american boy doutros tempos. É este corpo em decadência que Visconti filma magistralmente, em contraste com a juventude e energia de Tancredi/Alain Delon e com a sensualidade animalesca de Angélica/Claudia Cardinale. Um contraste que ganha novas nuances naquela que é a cena basilar do filme, o baile no Palazzo Ponteleone. Apresentada à alta sociedade de Palermo como noiva de Tancredi, Angélica aparece radiosa, ofuscando a aristocracia decadente que enche a sala - os velhos entediantes, as mulheres de gestos afectados, as jovens raparigas que tagarelam e saltitam como macaquinhas, tristes frutos de gerações e gerações de consanguinidade. A dado momento, Don Fabrizio retira-se para uma sala e contempla silenciosamente a pintura de Jean-Baptiste Greuze, La Mort du Juste. Novamente a morte. O momento de introspecção é quebrado pela entrada de Tancredi e Angélica. A vida volta a encher a sala e arrasta Don Fabrizio de volta ao salão para uma valsa. E dançam. Porque, como é sabido desde tempos medievais, a morte também dança.
Aviso: vou contar o final. Por isso, se não quiser saber, mude de página. Muito obrigada por ter acedido ao Espinha Quebrada.

Então aqui vai.
Don Fabrizio abandona o baile enquanto o palácio ainda fervilha. Caminha, já sem companhia. Exausto, senta-se a contemplar o céu estrelado. Sabemos que ele vai morrer mas o filme não segue o Príncipe de Salina até aos seus momentos finais. Don Fabrizio morre sozinho.
A. Zamperini

P.S.: Para a K.: "Nas nossas ruas ao anoitecer / Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.". Nunca o sentiste?

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Poesia



Há pouco tempo, um grande amigo chamou-me louca por ter dito em alto e bom som que detesto Poesia, afirmação que eu deixei sem resposta. Minutos mais tarde, no entanto, sentada à secretária a recortar as páginas da minha última aquisição na Feira do Livro 2013 – antes que se assustem, o livro ainda era do século passado, pelo que as páginas tinham mesmo que ser recontadas para o poder ler – pus-me a pensar: estará correcto afirmar que não gosto de poesia quando eu própria já escrevi no mesmo género nos tempos livres?
Confesso perante todos os leitores deste blog que os meus hábitos de leitura são relativamente recentes. Apesar de vir de uma família de ávidos leitores de clássicos, romances e contos, foi-me apenas despertada a paixão pela leitura na já não tão tenra idade dos 13 anos. Devo a minha actual obsessão (pois não sei como de outra forma posso considerar o prazer que sinto em possuir e ler vezes sem conta os mesmo livros vezes sem conta) à Câmara dos Segredos de J.K.Rowling (lido 11 vezes – sim, eu contei) e digo sem vergonha que faço parte dos milhares de seguidores que fervilhavam com o rumor de saída de um livro da saga… mas que gemiam com os filmes.
O meu amor pelo Mr. Potter acabou por amadurecer e direccionar-se mais para a arte da escrita que me fez apaixonar pelas personagens daquele mundo fantástico de Hogwarts (apesar de o tema nunca se ter esfumado de todo). Descortinei os segredos das brumas de Bradley (que nunca cheguei a terminar porque o Lancelot irritou-me), voei no dorso dos dragões de Paolini e iniciei-me nas trevas dos mundos de Bishop. Tudo isto nos tempos livres de manuais escolares e provas globais (nem acredito que ainda sou desse tempo) e até um trabalho de área de projecto sobre o Livro Enquanto Objecto no 9º ano – foi nessa altura que fiz o meu primeiro livro… com uma caixa de cereais (explico quando vos vir em pessoa).
Foi então que decidi arriscar e alargar os meus horizontes literários. Li o meu primeiro clássico, Orgulho e Preconceito. Sabemos que o nosso primeiro amor geralmente não está destinado a durar, e ainda que nunca deixe de sentir um grande apego à obra que me iniciou nas delícias da leitura, nada se poderá alguma vez comparar à profundidade do que senti depois de acabar o livro. Voltara a amar. Depois de ter devorado a obra completa – e de ter conseguido pelo menos 5 exemplares do Orgulho, em ambas as línguas - passei para Dickens e Brönte. Comecei também a ler a Nora Roberts e outros autores românticos. Até alguns exemplares da Sabrina fazem parte da minha colecção. Uma das minhas manias mais irritantes é ir procurar adaptações cinematográficas dos livros que mais gostei. Escusado será dizer que acabo a maioria das vezes muito desapontada. Mas no caso dos clássicos, a BBC conseguiu surpreender-me com as séries.
Agora é-me difícil confessar tanto como ver que os livros, que tanto adoro, estão a ganhar pó. A minha biblioteca, o meu orgulhoso santuário com mais de 200 exemplares (lembrem-se da minha famelga, não sou doida para comprar tantos livros em apenas 10 anos) ainda é o meu refúgio, mas os livros pouco saem do seu posto. As responsabilidades aumentaram e o tempo diminuiu. O tempo em que me trancava no quarto até acabar um bom livro já faz parte da História. Ainda leio, mas apenas nas horas vagas.
Mas tudo isto para dizer que não gosto de poesia. No meio de toda esta cacofonia de papel, não tenho um único exemplar cujo conteúdo rime minimamente sequer que não tenha sido comprado especificamente como obrigatório para as aulas de Língua Portuguesa. A maioria dos poemas que tenho não passa para além das páginas dos livros de escola. Tenho um ou outro que escrevi, como trabalho de casa e que admito ter gostado de escrever em momentos de inspiração mais metafísica, mas que considero serem, numa palavra, maus.
A prosa sempre esteve no meu coração, mesmo antes de começar a ler. Sou contadora de histórias por natureza e não trovadora. Gosto de Fernando Pessoa e de certos poemas de Cesário Verde. Mas de forma alguma - e peço desde já imensas desculpa a todos os poetas estrondosamente talentosos que sei que existem no mundo e ao meu amigo - considero um investimento pessoal livros cujo interior tenho que queimar neurónios para perceber ou para desvendar algum sentido (que pode nem sequer existir) quando esses neurónios me fazem e sempre fizeram muita falta.

Austen

segunda-feira, 3 de junho de 2013

TAG - O Sacrifício dos Livros


Todos já lemos, em algum momento das nossas vidas, livros de que não gostámos. Confesso que não me lembro de muitos. Quando começo a não gostar de uma leitura, normalmente, meto o livro de lado e esqueço-me dele. Temos tão pouco tempo para ler…e listas intermináveis de desejos… Contudo, já todos lemos coisas de que gostámos menos. Esta tag, que anda a circular pela Internet há uns meses, não é da minha autoria. Mas achei-a interessante. Não quero ofender ninguém, apenas expressar o meu profundo desagrado em relação a alguns livros que li.
Convido-vos a reagir aos quatro cenários que se seguem. É uma boa maneira de avaliar as vossas leituras, espantando alguns males!

Cenário 1: Estamos na nossa livraria preferida, completamente hipnotizados pelas novidades, a fazer ínfimas listas mentais com as razões pelas quais não precisamos de comprar mais livros (o costume…). Quando, de repente, ouvimos o anúncio: «Apocalipse de Zombies! Estamos a ser atacados por zombies e a única forma de se salvarem é atingirem o vosso inimigo com um livro sensacionalista!» Que livro, de todos aqueles que foram aclamados por toda a gente, escolheriam? Que livro sacrificariam sem nenhum remorso para se salvarem?

Para mim a resposta é fácil… Infelizmente este livro é de um autor que admiro imenso. Adoro a sua obra e posso mesmo afirmar que todos os seus livros me mudaram e influenciaram a minha forma de viver. Por isso… não podem imaginar o meu desgosto quando li o último livro do José Luís Peixoto: Dentro do Segredo - Uma viagem na Coreia do Norte. 
Sim, eu sei que é um livro de viagens e não de ficção, mas aquelas páginas foram uma tortura. Todo aquele tom mágico e intimista a que o autor me habituou desapareceu… Aquela sensação de estarmos a viver dentro das páginas e a tocar todos os acontecimentos narrados foi inexistente… Foi tudo o que um livro do grande José Luís Peixoto não deve ser: BANAL! Foi como ver um dos meus heróis preferidos cair em combate, perante o meu olhar impotente… até que… se refere a algo, enlaçando-me como nos livros anteriores… começo a sentir o seu abraço, ansiosa por saber o propósito daquele fragmento inesperado… quando me apercebo: ele está a descrever a sua relação com o telemóvel! Ok, eu sei que é mais do que isso, sei que é para se referir à distância intransponível entre ele e os que ama, à disparidade desumana existente entre espaços tão próximos, mas ao mesmo tempo tão distantes… eu percebo… mas… Porque me fizeste isto?! Porquê banalizar a tua genialidade? 
O pior de tudo isto é o destaque que deram ao livro, as conversas que me rodearam sobre ele e o olhar vazio das pessoas quando lhes perguntava se também tinham gostado, por exemplo, de Uma Casa na Escuridão  ou do Cemitério de Pianos… essas sim: obras-primas!
Enfim… sacrificava este livro sem remorsos, mas abraçava todos os outros dele!

Cenário 2: Acabamos de sair de um cabeleireiro com o melhor penteado do mundo. Nunca tivemos o cabelo tão bonito e gastámos uma fortuna! Estamos a sair e… BUUUMMM: Chuva torrencial! Não temos chapéu de chuva… temos de usar um livro. Que livro, numa série, estamos dispostos a sacrificar para proteger o cabelo?

Novamente vou referir-me a um livro que faz parte de uma das minhas sagas preferidas. Ao escolhê-lo, não é minha intenção falar mal da obra enquanto um todo: recomendo a todos que a leiam! Vão viver umas das melhores aventuras da vossa vida! Não se vão arrepender! Estes livros são os melhores amigos que podemos ter nas viagens diárias de comboio, deixando-nos a desejar que nunca cheguemos ao nosso destino… é doloroso fechá-los. Mas, de todos os livros de uma série, eu afogaria O Mar de Ferro, do George R. R. Martin, das Crónicas do Gelo e do Fogo. Não sentiria remorsos: as minhas personagens preferidas não aparecem e as outras andam de um lado para o outro numa letargia que me fez bocejar centenas de vezes! Sei que aprofundou outras personagens, apanhei alguns sustos, mas… no conjunto de todos os livros, este foi uma seca! Para ser sincera, só senti a adrenalina da leitura no capítulo «A Gata dos Canais» (não vou dar nenhum spoiler, descansem…).
Enfim… fui ao lançamento do Dance with Dragons em Portugal, conheci o autor, mas tenho o livro pendente… estou à espera de me recompor. Sei que assim que pegar nele, vai ser como se o anterior nunca tivesse existido (ainda bem…).

Cenário 3: Estamos sentados numa aula sobre literatura. O nosso professor começa a falar emocionado sobre aquele clássico que «mudou o mundo», mas que nós não suportamos. Odiámo-lo tanto que só queremos pegar nele e atirá-lo ao professor. Que clássico nos irrita tanto?

Esta resposta é fácil…O Livro de Cesário Verde! Quando o estudei, cheguei mesmo a escrever um ensaio com todas as razões pelas quais o odiava! Posso dizer que a professora ficou, no mínimo, surpreendida… Regra geral, ninguém gosta de ler livros por obrigação, mas só percebi o verdadeiro significado disso quando tive de ler os poemas de Cesário Verde. Senti-me a sufocar de repulsa perante muitos versos; posso dizer que a visão tão nua e crua, tão objectiva, do mundo é, para mim, uma limitação poética. 
Uma vez que não há nada mais subjectivo do que o mundo da poesia (ahahah), nunca atiraria com o livro ao professor, mas voltaria a escrever aquele ensaio! 

Cenário 4: Estamos na biblioteca quando… BUMMM! Explode o aquecimento global e o mundo transforma-se num deserto gelado! Para não morrermos de frio, temos de queimar livros. Qual é o livro que vamos queimar primeiro? Qual é o livro que menos gostámos de ler em toda a nossa vida? Qual é a obra que não sentiríamos remorsos em queimar?

Só me lembro de um livro que queimaria para purgar a minha desilusão. Estou a referir-me a um livro de um dos meus autores preferidos, alguém que admiro profundamente. Talvez seja por isso que odiei lê-lo: tinha tantas expectativas que a falta de tudo aquilo por que esperava foi um balde de água fria e tóxica. Estou a falar de um livro de Murakami: Sputnik, meu amor. Não consegui entrar no universo, senti-me apática e completamente desapontada com esta leitura. Preferia nunca ter lido este livro, para continuar a olhar para Murakami sem mácula. Nem tudo é perfeito…


K. Dalloway