sexta-feira, 14 de março de 2014

Tiro ao alvo

Don DeLillo, Libra, Lisboa, 
Sextante Editora, 2013.




"Ele e Kennedy eram parceiros. A figura do atirador à janela era inextricável da vítima e da sua história. Isto dava alento a Oswald na sua cela. Dava-lhe aquilo de que necessitava para viver."







A memória de John F. Kennedy parece indissociável de uma imagem que tantas vezes passou pelos nossos olhos: o descapotável azul escuro a acelerar numa rua em Dallas, a cabeça do presidente tombada, manchando o tailleur rosa de Jackie. Quando nos lembramos de JFK, lembramo-nos de Lee Harvey Oswald. Dois homens tão díspares que as circunstâncias juntaram lado a lado na memória colectiva.
Mas troquemos a palavra "circunstância" por "destino". Oswald era do signo Balança - em inglês, Libra, título escolhido por Don DeLillo para o romance publicado em 1988 que (re)conta toda a história, catapultando o (alegado) assassino para o protagonismo da narrativa. Atenção aos parênteses. Porque, como romance que é, não tem pretensões de apresentar um relato exacto dos acontecimentos, embora seja de louvar o apurado trabalho de DeLillo no apuramento dos factos e na atenção ao pormenor. O "alegado" é o cerne do enredo. Ou não fosse a morte do presidente Kennedy uma das fontes mais profícuas de teorias da conspiração de toda a história da Humanidade. Lee Harvey Oswald não matou JFK. Isso não é uma novidade nem para os iniciados nessas andanças de ver sempre algo mais no "algo menos" que é contado. Ora, DeLillo lança mais umas achas para a fogueira: CIA, Cuba, um inside jobNada que já não tivesse passado pela cabeça de qualquer bom teórico da conspiração. E Lee Harvey Oswald? No fundo, pouco mais é do que um peão no rumo dos acontecimentos, daqueles que fazem xeque-mate ao rei que acaba comido pelo próprio cavalo. Mas não é o "grande acontecimento" que atrai o olhar de DeLillo. Nem sequer o rei. Libra aproxima a lente do peão. E nós agradecemos.
O autor acompanha Oswald desde a adolescência até ao momento em que tomba atingido pelo tiro da .38 de Jack Ruby - um outro peão neste xadrez. Oswald é o dissidente, o que "traiu o país" ao cair de amores por Marx, pela URSS e por uma pobre rapariga russa. Oswald era o comunista - o arquétipo do inimigo número um nos USA dos anos 60, com Castro e Cuba a ensombrar o sonho americano. Mas não é esse o Oswald que DeLillo quer contar. Ele olha para o homem.
"Estamos a falar de um rapaz que jogava Monopólio com os irmãos, os professores nunca notaram nada de especial no tempo em que morávamos com Mr. Ekdahl, na Oitava Avenida, lá em Forth Worth. [...] Desde pequeno que gostava imenso de histórias e de mapas, tal como eu já lhe expliquei. Sabe coisas espantosas sem as ter aprendido na escola. Dormiu na minha cama por falta de espaço até perto dos onze anos, e temos vivido os dois em quartinhos minúsculos e acanhados enquanto os irmãos estavam no orfanato ou na academia militar ou nos Marines e na Guarda Costeira."
No passado mês de Novembro, 50 anos após a morte de John F. Kennedy, Don DeLillo esteve em Portugal para uma sessão de leitura promovida pelo Lisbon & Estoril Film Fest. Nessa noite, numa voz insegura, quase frágil, DeLillo contou que chegou a viver a poucos quarteirões da casa onde Oswald passou a infância sem nunca o ter sabido até bem depois de 1963. Circunstâncias. Ou destino, quem sabe.
A. Zamperini  

segunda-feira, 10 de março de 2014

Brancas

Venho por este meio apresentar as minhas mais sinceras desculpas. É desta forma que a lei não-escrita da formalidade nos exige que comecemos quando redigimos um pedido de desculpa. Ou pelo menos foi assim que me ensinaram. Mas não é que a situação exija necessariamente o perdão dos leitores deste blog ou das minhas irmãs. Não é como se tivesse feito algo de errado, cometido um crime contra a humanidade por assim dizer. Não fiz nada que justifique na verdade tanta formalidade de expressão exceto que, na verdade, a minha própria consciência assim o dite. Sim, consciência. O 'inquilino', como diria a Mafalda do Quino, a quem cada um de nós aluga um espacinho no coração. E porque o 'inquilino' assim o exige, apresento as minhas desculpas a todos pela minha falta de pontualidade em colocar os meus posts.
Penso não ser a única a quem as 'brancas' surgem do nada. Qualquer aluno que se preze já se queixou de brancas durante os testes aos seus pais e professores. O escritores têm 'brancas'. E, infelizmente para nós, elas surgem a toda a hora. No meu caso, o meu cérebro tratou de empenar as minhas mãos desde o Entrudo e ainda não as libertou. Não é que não tenha lido desde então. A minha lista de leituras continua a ser proporcional à minha lista de livros lidos. Mas por alguma razão, falta a inspiração (perdoem-me a rima). A poesia nunca me atraiu, mas mesmo o chamado dos meus amados clássicos parecem mudas. Os intitulados (não sei por quem) best sellers não têm o mesmo atrativo que tinham meses atrás e restam-me apenas os livros que pretendem filosofar sobre questões do dia-a-dia. Mas, e vou ser sincera, acho que a população mundial já pensa, remói e filosofa o suficiente sobre o mundo atual para ter paciência para ler sobre o livros que falam do mesmo. Têm total liberdade para pensar o contrário, claro.
Na falta de livros para criticar e de temas sobre livros sobre os quais escrever, a falta de tema surge como um tema adequado para debater. É um mal do qual todos sofrem, que não tem cura (descoberta), e que influencia o nosso desempenho. Mas, uma vez que muitas vezes afectar também a data em que começo e acabo de escrever, sinto que devo pedir desculpa. Afinal, sejam elas brancas, azuis, vermelhas ou pretas, tenho a fama da minha homónima para manter.

Austen


domingo, 2 de março de 2014

Deliberado Vs. Acidental



As personagens são importantes numa história. São a quilo que a move, que nos faz ligar a elas e que nos deixam viver naquele mundo. Algumas são escritas de forma a serem irritantes como parte da história, da sua personalidade, do seu crescimento. Outras simplesmente caem nessa categoria quando o autor as tenta manter fechadas numa caracterização sem nos dar qualquer justificação ou sugestão que permita ao leitor compreender.
Vou usar dois exemplos que encontrei nas minhas leituras e entretenimento:

Yukine da manga (e recente adaptação para anime) Noragami (ノラガ), série de Adachitoka, publicada pela Kodansha;

E
Calédra do volume 95 da colecção Via Láctea O Regresso dos Deuses: Rebelião por Pedro Ventura;

Yukine: O espírito de um jovem morto, encontrado ainda sem se encontrar corrompido nas ruas cheias de espíritos maléficos que levam humanos ao desespero. Estes espíritos são combatidos pelos deuses com armas sagradas hamadas Shinki. Yato, um antigo Deus da Guerra que recentemente perdeu o seu Shinki (ela despediu-se), escolhe-o para se tornar o seu novo Shinki.
O que o traz, de certa forma de volta à “vida”, com idade e aparência com que tinha morrido mas agora possuindo poderes especiais para combater monstros/evil spirits/ phantom/ Ayakashi. Nesta situação eu andaria pular de alegria. Viver para sempre, combater monstros, magia, deuses…
Mas a personagem foi escrita para no início ser uma peça disruptiva, cheio de ressentimento, desejando a vida que nunca teve, roubando e magoando outros sem remorsos, sem mostrar respeito ou gratidão quando deparado com actos de bondade para com ele, que feitos por Yato (que geralmente disfarça sob uma fachada arrogante) ou Hiyori (uma rapariga meio-ayakashi que tenta voltar ao normal, ajudando o par).
Foi feito para que ao mesmo tempo que compreendemos de onde as suas acções derivam, desejo de vida, amigos, de pequenas coisas humanas, não conseguimos manter grande simpatia porque tanto Yato com Hiyori e onde se encontra lhe oferecem os seus desejos se ele simplesmente aceitasse que mudou. Estas acções negativas por sua vez afectam Yato quase ao ponto de o matar.
Yukine foi feito para ser desagradável ao início, abrasivo, deliberadamente escrito como um alvo. Mas também foi feito para que a personagem pudesse crescer e para que os leitores pudessem ver para além das acções egoístas. Os leitores sabem o que se passa de ambos os lados. E Yukine por fim cresce ao admitir o que fez mal e ao se aperceber das possibilidades que o novo mundo lhe oferece. Como Shinki tem uma vida.

Calédra descrita como bela guerreira de uma raça que se acredita superior, um peixe fora de água temporal, antiga rainha, passado obscuro Portadora da Luz, destinada a salvar o mundo… MARY SUE ALERT (http://tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Main/MarySue)

 (E tudo isto tirado apenas da parte de trás do livro, da sinopse. O que me levou a comprá-lo? É parte da colecção da Presença de literatura fantástica que até aquele momento pouco ou nada me desapontara. Em 95 livros não gostei de alguns mas sabia que estavam bem escritos e haviam sido lidos com interesse. Apenas os terminei e disse "bem... não é exactamente o que gosto". E ainda assim prenderam-me. Surpreendi-me com outros. Mas nenhum foi doloroso a este ponto [ver parágrafo seguinte]) ;

Vou dizer o seguinte. Estou há quase três anos a tentar acabar este livro. Como personagem principal Calédra é-me de tal forma insípida…

Ela aparece com alguém frio e distante, o que seria compreensível na situação. Mas a caracterização é constante sem nenhum indício de que haja algo mais por trás e quaisquer pistas são de imediato caladas pela atitude da personagem ao longo de 390 páginas nem há qualquer indício de evolução e descongelamento. Sempre a bela guerreira que estoicamente vai salvar o mundo. Não se encontram os pontos que fariam o leitor conectar com ela. Não se encontram os pontos que fariam os soldados “amar” o seu general/rainha. Tudo o que o autor descreve sobre ela é apenas “habilidades informadas”. Vemos acções e combates. Mas aquilo que se relaciona com a personalidade de Calédra é apena dito pelas descrições. As acções não reflectem que o autor diz que ela é.
Há personagens que são calados e estóicos. O autor tentou dar-lhe esse arquétipo. Mas esqueceu que toda a vida interior que esses percentagens possuem, que deve ser vista pelos leitores e subtilmente indicada pelas acções na história. Tentou encerrar-se e tornou a personagem numa imagem de perfeição estática e tediosa.

Há personagens que se encontram já ‘congelados’ numa forma estática e final. Mas desses se conhecermos o seu passado e se forem, de certa forma, secundários à trama, o que se compreende dessa forma de estar estática é que já amadureceram, cresceram, sabem aquilo que desejam e precisam. Mas isso é mostrado para além de descrito.


Se querem uma rainha olhem para Daenerys Targaryen;
Se querem uma guerreira olhem para Dangeruese St. Richard ou Katniss Everdeen;
Se querem personagens femininas poderosas mas de diferentes personalidades e capacidades procurem Erza Scarlet (http://www.youtube.com/watch?v=GcUplzOOMRE) e Mirajane Strauss (http://www.youtube.com/watch?v=6cJxm8EBsto) da anime/manga Fairy Tail.

Sabine