quinta-feira, 20 de junho de 2013

O Eco do Monólogo


Título: Desespero
Autor: Vladimir Nabokov
Editora: Teorema
Páginas: 234

Que é o desespero se não uma distorção da nossa relação connosco próprios? Uma falha de ligação, uma deflexão inconsciente na escolha do inverosímil. É através da construção de uma realidade imbuída de incerteza e engano que o autor conversa connosco, ludibriando-nos, mostrando-nos que a aparente unicidade se desdobra por diferentes, e ilimitados, caminhos. Existimos revendo-nos no outro, criando e destruindo, «pois a invenção da arte contém muito mais verdade intrínseca do que a realidade da vida».



É hilariante a forma como submergimos totalmente no universo criado por Nabokov, focando totalmente a nossa atenção nas palavras do narrador, como se este se nos estivesse a dirigir, contando-nos os seus planos e segredos mais profundos. Há uma intimidade tão desvelada que nos sentimos ofendidos quando percebemos que estamos a ser ludibriados, manipulados pelas contradições do próprio autor. Fomos avisados logo de início, mas a consumação da mentira é o método perfeito para vislumbrarmos o mundo dúplice pelos olhos da demência que permeia todo o livro.
O narrador é Hermann, um magnata do chocolate, que encontra o seu duplo num sem-abrigo em Praga, Félix. Toda a história gira em torno do plano de Hermann em trocar de identidade com Félix, aproveitando-se da ingenuidade deste para o ludibriar, acabando por assassiná-lo para receber o seu próprio seguro de vida, roubando a identidade do vagabundo, desconhecida por todos. Hermann é casado com Lydia, a típica mulher vã e fútil, facilmente perturbável, que acolhe o seu primo pintor, Ardalion (com quem parece ter uma relação que ultrapassa os laços familiares e a do mecenato). O protagonista vive num mundo abastado, orquestrado por obrigações, mas em eminente declínio devido a problemas financeiros. É assim que vê a oportunidade de enveredar por uma vida mais livre através da manipulação do seu duplo, querendo transformar-se num outro, transfigurando toda a realidade que conhecia até então através do seu plano, premeditando até o acaso.
O plano desenrola-se e nós embarcamos nele, imbuídos de desconfiança em relação aos relatos até à última página, sempre sem saber o que é mentira e o que é verdade, perdendo-nos na multiplicidade de hipóteses que se desvelam perante o nosso olhar passivo, também ele querendo saltar para a corrente de acontecimentos para recriar a realidade, transfigurando-a em arte. Tudo desvanece perante a evidência… será Félix o duplo de Hermann? É possível encontrarmos o nosso duplo ou é ele uma mera criação nossa, produto da transfiguração do reflexo? Irá Hermann alcançar a realidade criada por ele?
O importante, acredito, é aceitar essa falha na nossa ligação connosco próprios. Afinal, a existência só se concretiza se ambicionamos por ela: «Mentia como o rouxinol canta, extasiado, esquecido de mim; regalava-me com a nova harmonia da vida que ia criando.»


K. Dalloway

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