segunda-feira, 10 de junho de 2013

A morte dança

Escrevia há uns dias a mana Austen sobre a adaptação de livros para o grande ecrã. A recente estreia nas salas de The Great Gatsby e a pouca unanimidade que mais uma adaptação do clássico de Scott Fitzgerald reuniu entre a crítica trouxeram à ordem do dia a velha questão de tudo o que se perde do papel para a tela (no caso do filme de Baz Luhrmann, penso que o problema reside no que se ganhou a mais e, sobretudo, demais) e da existência ou não de livros inadaptáveis ao cinema ou, pelo menos, incapazes de ver dignificada na imagem o valor do texto escrito. Não nos esqueçamos, porém, do reverso da moeda - obras literárias menores que deram lugar a grandes clássicos do cinema, como O Padrinho de Francis Ford Copolla (adaptação do livro homónimo de Mario Puzo, que também assina com Copolla o argumento do filme), ou o interminável E Tudo o Vento Levou de Victor Flemming (a partir do romance de Margaret Mitchell).
Mais raros são os grandes livros que dão lugar a grandes filmes. Peçam-me um exemplo que eu tenho um mesmo aqui, debaixo da língua, e, já agora, também empoeirado na prateleira de cima da minha estante. É verdade, não lhe pego há algum tempo. Falo de O Leopardo de Tomasi di Lampedusa, ou melhor, no título original (e porque em italiano tudo soa melhor) Il Gattopardo, magnífico livro que deu lugar a uma autêntica obra-prima do cinema italiano, com realização de Luchino Visconti, corria então o ano de 1963.

Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo,  Lisboa, Teorema, 2007
(ed. original: Feltrineli, 1958) 

O romance de Tomasi di Lampedusa leva-nos até à ilha de Sicília em pleno Risorgimiento e apresenta-nos Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina. Nele, o sangue azul contrasta com o vermelho das camisas dos revolucionários que pintam o chão inóspito. Mas Don Fabrizio é, sobretudo, um observador da mudança, da queda da aristocracia e da emergência de algo novo que, talvez, não seja tão novo assim. "É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma", frase lapidar de Tomasi di Lampedusa, aplicável ao século XIX italiano, aplicável ao século XXI português. 
Mas não nos dispersemos.
Don Fabrizio vê a mudança invadir a sua casa e a sua família pelas mãos do amado sobrinho Tancredi. Ele traz novos valores e novo sangue. Traz a paixão por Garibaldi, volátil, capaz de mudar como quem troca de camisa, literalmente. Traz a paixão por Angélica, a filha do novo-rico Don Calogero, encarnação da burguesia emergente, cuja graciosidade encoberta o berço e a beleza esconde a falta de requinte. Angélica é o novo e, perante o novo, Don Fabrizio, o velho Don Fabrizio, que embora ainda capaz de arrebatar corações femininos, já sente a virilidade vergar-se ao peso dos anos (desculpem a falta de subtileza da imagem), experimenta um misto de retracção e atracção. Angélica expele vida enquanto Don Fabrizio sente a morte a aproximar-se ao mesmo ritmo da Liberdade, Igualdade e Fraternidade da revolução vizinha.
Aliás, se tivéssemos de sintetizar o tema-chave de O Leopardo, ainda mais do que o retrato fiel desse momento de mudança de paradigma social vivido pela Europa de Oitocentos, apontaríamos para uma simples palavra: a morte. Não a morte enquanto fim, mas sim enquanto transformação.
Essa é a leitura que Luchino Visconti soube transmitir para o grande ecrã, tornando o que poderia ser historicamente datado em algo universal. Não é uma adaptação a régua e esquadro do livro. Inclusivamente, difere substancialmente no final - o livro avança no tempo, dando um maior relevo à personagem de Concetta, a filha de Don Fabrizio e última réstia dos Salina. Novamente, sublinho: trata-se de uma interpretação do livro feita por aquele que é um dos grandes mestres do cinema italiano, mestria manifesta a cada plano.


A Don Fabrizio foi dado o corpo, e que corpo, de Burt Lancaster, bem longe da imagem all-american boy doutros tempos. É este corpo em decadência que Visconti filma magistralmente, em contraste com a juventude e energia de Tancredi/Alain Delon e com a sensualidade animalesca de Angélica/Claudia Cardinale. Um contraste que ganha novas nuances naquela que é a cena basilar do filme, o baile no Palazzo Ponteleone. Apresentada à alta sociedade de Palermo como noiva de Tancredi, Angélica aparece radiosa, ofuscando a aristocracia decadente que enche a sala - os velhos entediantes, as mulheres de gestos afectados, as jovens raparigas que tagarelam e saltitam como macaquinhas, tristes frutos de gerações e gerações de consanguinidade. A dado momento, Don Fabrizio retira-se para uma sala e contempla silenciosamente a pintura de Jean-Baptiste Greuze, La Mort du Juste. Novamente a morte. O momento de introspecção é quebrado pela entrada de Tancredi e Angélica. A vida volta a encher a sala e arrasta Don Fabrizio de volta ao salão para uma valsa. E dançam. Porque, como é sabido desde tempos medievais, a morte também dança.
Aviso: vou contar o final. Por isso, se não quiser saber, mude de página. Muito obrigada por ter acedido ao Espinha Quebrada.

Então aqui vai.
Don Fabrizio abandona o baile enquanto o palácio ainda fervilha. Caminha, já sem companhia. Exausto, senta-se a contemplar o céu estrelado. Sabemos que ele vai morrer mas o filme não segue o Príncipe de Salina até aos seus momentos finais. Don Fabrizio morre sozinho.
A. Zamperini

P.S.: Para a K.: "Nas nossas ruas ao anoitecer / Há tal soturnidade, há tal melancolia, / Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.". Nunca o sentiste?

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