quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O Cemitério de Praga





Umberto Eco, O Cemitério de Praga, Lisboa, Gradiva, 2011
(ed. original: Il Cimitero di Praga, Milão, RCS Libri, 2010)






Simone Simonini tem, além de um nome ridículo, um problema, no mínimo, incómodo: as súbitas perdas de memória. Mas não é coisa de se esquecer onde pôs as ceroulas ou o número da porta do barbeiro. Passam-lhe em branco dias inteiros. Acorda e pensa que é segunda quando, afinal, já vai na quarta. Vasculha os seus papéis e encontra anotações de um tal abade Dalla Piccola (e que vida atarefada tem esse homem do Senhor!), com o qual nunca na vida se cruzou, não obstante o facto de, pelos vistos, até partilharem a mesma casa.
- Pois, pois... O Doppelgänger de novo! Lá para o final, enigma resolvido: Simone Simonini e Dalla Piccola são mesmo. Et voilá! The end.
Lamento informar o caríssimo leitor mas não é esse o twist do enredo. Até porque essa é uma hipótese (óbvia) que ocorre a Simonini logo nas primeiras páginas e que o leva a perguntar "Quem sou?". Ora bem, aqui ficam alguns esclarecimentos da nossa personagem.
  1. "Amo a boa cozinha". Sobre isto, vale a pena saber um pouco mais: "Era preciso pelo menos meio quilo de carne limpa de novilho, um rabo, alcatra, salamezinhos, língua de vitela, cabecinha, salpicão, galinha, uma cebola, duas cenouras, dois talos de aipo, uma mão-cheia de salsa. Deixa-se cozer tudo durante tempos diferentes, de acordo com o tipo de carne. Mas, como lembrava o meu avô, e o padre Bergamaschi aprovava com enérgicos acenos da cabeça, assim que o cozido era colocado na travessa para servir à mesa, era preciso espalhar uma mão-cheia de sal grosso sobre a carne e verter nela algumas colheradas de caldo a ferver, para lhe fazer sobressair o sabor. Pouco acompanhamento, salvo algumas batatas, mas fundamentalmente os molhos, seja mostarda de uva, molho de rábano, mostarda de grãos de fruta, mas sobretudo (o avô não transigia), o bagnet verde: uma mão-cheia de salsa, quatro filetes de anchova, o miolo de um pão, uma colher de alcaparras, um dente de alho, uma gema de ovo cozido. Tudo finamente triturado, com azeite e vinagre". Tomaram nota?
  2. "Quem odeio? Os hebreus". Bem, pelos vistos, não odeia assim tanto, mas enfim...
  3. Os alemães, "o mais baixo nível de humanidade concebível", com "hiperactividade da função intestinal em prejuízo da cerebral" (Atenção: estou só a citar).
  4. Dos franceses, também não é grande apreciador: "O francês não sabe bem o que quer, excepto que sabe perfeitamente que não quer aquilo que tem."
  5. E dos italianos, ainda menos. "O italiano não é de fiar [...], coerente só no mudar de bandeira conforme o vento".
  6. Na mesma gaveta, coloca os maçons e os jesuítas, até porque "os jesuítas são maçons vestidos de mulher".
  7. "Odeio as mulheres". Para Simonini, mulher é sinónimo de meretriz, e estas ele só conhece de longe, pela passagem "prudente" por Brasseries que, nos idos Oitocentos, serviam algo mais do que cerveja e petiscos. "Alguém disse que as mulheres são apenas um sucedâneo do vício solitário, salvo que é necessária mais fantasia."
Em suma, Simonini odeia tudo e todos, excepto uns bons pitcchipacchi (Não perguntem...).
Mas, apesar de Simonini odiar tudo e todos, acontece-lhe tudo e cruza-se, efectivamente, com todos: missas negras, a Comuna de Paris, os Protocolos de Sião, mortes e ressurreições, jesuítas, maçons, carbonários, Garibaldi, Dumas, Freud...
- Portanto, um Forrest Gump de chapéu de coco.
Por aí, estimado amigo, por aí.
Mas antes que julgue tudo isto uma grande salsada, vale a pena frisar que, por detrás do enredado enredo, encontra-se a hábil pena de Umberto Eco que, como sempre nos tem habituado, polvilha generosamente de humor e ironia uma história temperada (vícios do ofício) pela erudição, ao combinar personagens e factos históricos com as aventuras e desventuras de uma personagem fictícia, aliás, a única fictícia em toda a história: Simone Simonini. Tudo isto, num tributo aos folhetins que, no século XIX, nutriam generosamente a imaginação dos leitores. Bom apetite!
A. Zamperini

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