quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Não acordem os deuses

É Fevereiro e, fiel ao cliché, tento trabalhar o meu lado romântico, com esforço e pouco sucesso. Recapitulo leituras passadas (não, ainda não acabei o livro que tinha em suspenso desde o último post, além de que, sejamos claros, não é obra que prime pelo romantismo) e, salvo uma passageira fase da adolescência, aquela em que todos os heróis têm as feições do rapaz giro da turma, não reconheço no meu CV de leitora uma particular familiaridade com o tema. Não, não guardo Camilo e Dinis no meu coração.
Vou, então, alargar o espectro até à irracionalidade, à obsessão, ao "lado lunar" das relações amorosas, e quem me guia é um mestre do Naturalismo - Henry James.
Em 1874, James publicava "The last of the Valerii" na revista americana Atlantic Monthly. No ano seguinte, integraria o seu primeiro livro, A passionate pilgrim and other tales. O "último dos Valerii" é Marco Valeri, aristocrata italiano cujo perfil lembra o busto de Caracala e a personalidade parece igualmente talhada em mármore frio. Mas não é a sua voz que norteia a narrativa. A narração está a cargo do padrinho da jovem Martha de caracóis louros que Valeri levará ao altar, um "pintor de ruínas e relíquias" que assiste curioso aos preparativos da boda e continuará na sua posição de observador a acompanhar o desenrolar da trama. Casados de fresco, os Valeri instalam-se numa vila dentro das muralhas de Roma que o conde herdara e tentava agora recuperar do estado de degradação em que caíra, sempre com a preciosa ajuda da esposa. "A vida do casal era um intercâmbio pueril de carícias, cândidas e naturais com as de um pastor com a sua esposa num poema bucólico. Passear pelo jardim sentindo o braço do marido perto da sua cintura, o ombro perto da sua face; enrolar cigarros para ele, enquanto o via fumar no pátio redondo de pavimento marmóreo ao centro da casa; encher o copo dele com vinho de uma velha ânfora descorada". Enfim, a imagem viva da felicidade conjugal aos olhos do homem oitocentista.
Mas algo tinha de acontecer, não é verdade? Gradualmente, James dá ao leitor sinais do quão frágil essa imagem é. Sem crenças, esperanças ou medos (quiçá sem alma), o conde revela-se um ser distante, estranho até. O narrador teme pelo futuro da afilhada e vislumbra que aquela felicidade não sobreviverá ao encantamento dos primeiros tempos. Mas Martha não parece preocupada. Entretém-se a brincar de arqueóloga, procurando no jardim da vila tesouros escondidos. Começa a busca por uma Minerva em bronze dourado, alegadamente ali enterrada. O marido não mostra interesse, até revela desagrado - porquê interromper o repouso dos fantasmas? Uma manhã, é encontrada uma Juno em mármore. O seu aparecimento é anunciado ao conde em sonhos e faz despertar nele algo até então adormecido. Mas passemos a palavra ao autor:
"Fomos encontrar o conde de pé diante da deusa renascida, observando-a imóvel, com os braços cruzados. Parecia ter recuperado do choque associado ao sonho, mas julguei ver por trás da sua expressão uma emoção mais profunda ainda. Estava pálido, e não reagiu quando a mulher se agarrou ao seu braço com afecto. Não estou seguro, todavia, de que a atitude da mulher não constituísse um tributo mais vivaz à perfeição da obra."
James é brilhante na sugestão e, por isso, não vale a pena adiantar mais.
São várias as edições de "The Last of the Valerii", integrado em colectâneas de contos de Henry James. Pessoalmente, a que povoa a minha estante é da Vega - Daisy Miller e Outros Contos - , uma tradução da colectânea inglesa Selected Short Stories. Vale a pena ler o "O Último dos Valerii" e, depois de recuperados da Juno de mármore, passar aos restantes contos, sobretudo ao belíssimo "Daisy Miller", um dos expoentes da literatura americana do século XIX. Depois de iniciados em Henry James, uma outra sugestão - enveredar numa leitura de maior fôlego com o Retrato de Uma Senhora.
A. Zamperini
    

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