quinta-feira, 3 de outubro de 2013

O medo mora comigo


Começo novamente com música. Desta vez, fado. Não é propriamente a minha praia mas "O Medo", na voz de Amália, é outra história. Talvez pelos versos iniciais:
Quem dorme à noite comigo
É meu segredo,
Mas se insistirem, eu lhes digo:
O medo mora comigo,
Mas só o medo.
Não sei se Amália terá lido Maupassant, mas parece.

Se a memória não me atraiçoa, comprei Contos do Insólito de Guy de Maupassant numa promoção da Guimarães na Feira do Livro há alguns anos atrás. Algumas semanas antes, numa sessão da Cinemateca, tinha assistido ao filme de Max Ophuls, Le Plaisir, baseado em três contos de Maupassant e que encerra com uma sábia frase: "Le bohneur n'est pas gai". Inicialmente julguei que a citação fosse de Maupassant - discípulo de Flaubert, teria herdado do mestre o talento para as frases lapidares - mas, pelos vistos, não. Mérito para o argumentista.
Mas não é a bonheur mas sim o peur o tema do meu post de hoje.


Guy de Maupassant, Contos do Insólito,
Lisboa, Guimarães Editores, 2004.

Contos do Insólito reúne 21 contos de Maupassant publicados ao longo da sua vida em revistas e outras colectâneas. O fantástico, o surreal, o macabro, enfim, o insólito é a tónica comum a todas estas pequenas histórias, formato em que Maupassant se tornou uma referência. Entre esta colecção encontramos "A Horla" ("Le Horla"), um dos contos mais célebres do escritor e, esse sim, capaz de encaixar que nem uma luva na temática do mês - o Terror.
A colectânea apresenta duas versões do mesmo conto. A primeira, publicada em 1886 na revista Gil Blas, apresenta o cenário de uma reunião científica em que o Dr. Marrande, "o mais ilustre e o mais eminente dos alienistas" apresenta aos seus colegas o mais estranho caso com que alguma vez lidara. É então que aparece um homem "muitíssimo magro, de uma magreza de cadáver, como são magros certos loucos roídos por um pensamento, porque o pensamento doente devora mais a carne do que a febre ou a tísica". Perante o grupo de cientistas, esta misteriosa figura começa a contar a sua fantástica história.
No ano seguinte, Maupassant retomou o conto e deu-lhe um novo formato. Abandonando a reunião do Dr. Marrande, que na primeira versão não serve mais do que um pretexto para o cerne do enredo, o autor concentra-se na narrativa daquele misterioso homem, sob o formato de um diário. Seria esta versão a mais célebre, publicada em 1887 no volume homónimo Le Horla.
A fórmula adoptada por Maupassant - o tudo estava bem até que... - é comum no género e fez escola até aos dias de hoje não só na literatura, como também no cinema. 
O diário começa num "dia admirável" de 8 de Maio. O protagonista vive feliz: gosta da sua terra, gosta da casa onde vive, vendo o Sena pela janela e, à esquerda, Ruão. Naquela manhã, o rio traz-lhe a imagem de navios a passar, entre eles "um soberbo três-mastros brasileiro todo branco, admiravelmente limpo e reluzente".
12 de Maio, tudo mudou. Primeiro uma ligeira febre e uma súbita tristeza. Dias depois, "um enervamento febril", as dores da alma que superam as do corpo. Os remédios da medicina revelam-se incapazes de resolver tais maleitas. À febre sucedem os terrores nocturnos e a estranha sensação de mais alguém no quarto. Inicialmente uma simples presença, depois o contacto, as mãos invisíveis que lhe tomam o pescoço e o sufocam. Só fora de casa, encontra o sossego - numa temporada no Monte de Saint-Michel, onde enceta conversa com um monge crente no oculto; nuns dias em Paris, longe da solidão. Conclui que o mal reside entre as quatro paredes do lar. Tanto assim é que, de regresso do Monte de Saint-Michel, ele encontra o cocheiro abatido, sofredor do mesmo mal: "são as minhas noites que comem os meus dias". Porém, o mal acaba por invadir o corpo e a alma do pobre homem. O "horla" torna-se ele mesmo. "Sinto-o perto de mim, a espiar-me, a fitar-me, a penetrar-me, a dominar-me". A loucura.
Resta dizer que, ao longo do conto, ficamos a saber quem (ou o que) é o "horla" e como entrou em cena. No desenlace, o homem encontra finalmente uma solução. Qual é? Leiam. Ou tentem adivinhar.
E tenham medo, muito medo.
A. Zamperini

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