terça-feira, 22 de outubro de 2013

Curiosos, fiquem avisados

Lembram-se da Pandora e da sua bolsa? Pois é, às vezes a curiosidade tem dessas coisas. Aliás, o excesso desse tão sábio vício pode até ser o mote para uma história de desenlace macabro. 
Assim pensou Montague Rhodes James, mais conhecido pelas iniciais dos primeiros (excelentes) dois nomes acrescidas ao prosaico apelido, por extenso. Simplificando, M. R. James (1862-1936), académico de Cambridge, medievalista, aficionado por antiguidades e pai de um género de histórias de fantasmas, as antiquarian ghost stories
Conta-se que M. R. James escreveria estas histórias, ou uma boa parte delas, com um propósito bem definido: o de serem lidas em voz alta, nos serões frios de Natal, quando família e amigos se reuniam para a partilha de sustos. Ainda falta algum tempo para a quadra, é verdade, mas o frio já começa a fazer-se sentir lá fora e ainda no outro dia vi bolos-reis e broas castelares na montra do supermercado. Sugestão: pegue no cobertor e no chocolate quente e... Bu.






M. R. James, Novas Histórias de Fantasmas, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994
(ed. original: Collected Ghost Stories, 1931)









"A Warning to the Curious" é o conto que hoje trago. Como a obra já se encontra em domínio público, é fácil (e legal) encontrá-lo na íntegra na Internet. Originalmente publicado em A Warning to the Curious and Other Ghost Stories, em 1925, voltaria a integrar uma nova colectânea de contos de M. R. James seis anos depois, Collected Ghost Stories. Nos anos 90, esta obra foi traduzida e publicada em Portugal pelas edições Europa-América, numa colecção de livros de bolso dedicada ao género. Creio (e corrigem-me se estiver enganada) que se trata da única tradução da obra de M. R. James no nosso país, o que, assim sendo, é de lamentar. Aqui fica a achega para as editoras portuguesas.
Mas concentremo-nos agora do conto propriamente dito. "A Warning to the Curious" contém todos os ingredientes de uma antiquarian ghost story: um cenário bucólico que não deixa antever o desenlace, um antiquário como protagonista, a descoberta de um objecto vinculado ao sobrenatural. Especifiquemos: o cenário é a localidade fictícia de Seaburgh que, como o nome indica, fica na costa inglesa; o protagonista é Paxton, um antiquário; o objecto encontrado (e usurpado do seu local de origem devido à curiosidade do protagonista) é uma antiga coroa anglo-saxónica que, conta a lenda, seria uma de três coroas sagradas "semeadas" junto ao mar, com o poder de afastarem da costa inglesa potenciais invasores. Ora, a coroa fora, durante gerações, guardada por uma família, os Ager. Com a morte do último descendente, William Ager, o objecto sagrado ficara desprotegido. Ou talvez não. É nesse "talvez" que reside o âmago do enredo... e não digo mais.
Um ou dois apontamentos formais sobre "A Warning to the Curious". O texto é dotado de uma forte oralidade. Aliás, é fácil imaginá-lo a ser lido na tal noite fria de Natal. Talvez na voz de Christopher Lee.


BBC Ghost Stories for Christmas, ep. 1

A estrutura também revela a mestria de M. R. James em sugerir mais do que revela. Num efeito matrioshka, encontramos três narrativas encaixadas sucessivamente. 

  1. O narrador, não identificado, começa o conto rendido à paixão por Seaburgh e pelas suas lendas e tradições ("Still it keeps its place in my affections, and any tales of it that I pick up have an interest for me"). Diz então que vai contar uma história que ouviu a um conhecido seu. 
  2. Entra então a narrar o dito conhecido, também ele não identificado. Este segundo narrador torna-se numa personagem do enredo. Hospedado num hotel em Seaburgh, na companhia do amigo Henry Long, é ele quem recebe a visita inesperada de um outro hóspede, um homem esquálido e nervoso, do qual, só bem mais tarde, ficamos a conhecer o nome, Paxton. 
  3. Paxton torna-se no terceiro narrador ao contar a insólita história que o levara a tal estado de esgotamento. 
Mais à frente, o autor regressa ao segundo narrador e é na voz deste que termina a história. Até porque Paxton já não se encontrava em condições de terminar a narrativa. 
Ups! Spoiler!
A. Zamperini

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