terça-feira, 10 de setembro de 2013

Os Sons da Ausência

Título: O Músico Cego
Autor: Vladímir Korolenko
Editora: Arbor Litterae (chancela de Estrofes & Versos) - Março de 2010
Páginas: 272

Nem sempre é certo determinar que ritmo pauta a desmesura que habita a condição humana. A maldição do estrangeiro paira sempre sobre os mais verdejantes campos e cala o murmúrio do tempo, assombrando, em boa hora, a sua linearidade. Para entrarmos neste mundo, nesse labirinto eterno de incessantes desencontros, temos de reinventar o diálogo dos sentidos a cada instante, moldarmo-nos para nos criarmos. A cegueira mais não é do que o ponto de partida para essa fantástica epopeia da vida, que, apesar da penumbra da melancolia, ilumina o ser.


O Músico Cego é um livro fascinante, com uma escrita muito fluida, que encontra na simplicidade a magia que a literatura encerra ao meditar sobre questões fundamentais que, transmitidas por outros meios, perderiam a sua autenticidade. Através da história de Piotr, a personagem principal, que conhecemos desde o seu nascimento, quando entra no mundo da escuridão, e o acompanhamos ao longo do seu crescimento, o autor mostra-nos o poder de uma visão alternativa que, oculta pela ociosidade do olhar, perde a sua importância no mundo como o conhecemos. Julgado como uma criatura fraca e amputada, é criado num ambiente de protecção, sempre debaixo da asa da sua mãe e do seu tio, Maksim. Contudo, no reino das trevas, Piotr encontra outros contornos, navegando através da criação do seu próprio universo a partir dos sons. O frágil rapaz cego encontra no som de uma Ucrânia rural as raízes da sua origem, criando um mundo novo, contrariando todos os versos da sua danação e destruindo todas as barreiras impostas pelo paradigma da sociedade. A vontade pode destroçar o descontentamento.


Várias são as temáticas que percorrem as páginas deste livro, como a possibilidade de o amor poder crescer nos sítios mais inesperados, a maldição da cegueira na incapacitação do indivíduo, a ausência de pai, ou os limites do livre-arbítrio perante a predestinação divina. Mas aquela que mais me prendeu a esta leitura está relacionada com a música em si, com o seu poder de criar, de erigir mundos e encerrar em si segredos que não podem ser pronunciados. A música é retratada como um mecanismo de criação, uma linguagem que excede a técnica e que brota naturalmente da inexplicável e turva condição humana. Para lá das palavras, da reprodução de pautas antigas, da técnica mecânica, está o poder da interpretação, do renascimento. De facto, Piotr destaca-se dos outros músicos de conservatório, que conhecem todas as teorias e técnicas, por habitar, ele mesmo, o mundo dos sons, tornando-os seus. O músico cego encarna os sons, insuflando-os de vida, reinterpretando-os a cada instante, pois, esse sim, é o seu território. E das trevas emergiu a mais bela melodia.

K. Dalloway

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