segunda-feira, 8 de abril de 2013

Papagaios e outras bestas


Julian Barnes, O papagaio de Flaubert, Lisboa, Quetzal, 1988 [ed. original: Flaubert’s Parrot, Londres, Jonathan Cape, 1984]


Tudo começa com um papagaio embalsamado num museu em Ruão. Dizem que esteve na mesa de Flaubert enquanto ele escrevia Un coeur simple, conto sobre Felicité, uma criada que concentra os seus afectos e a sua fé em Lulu, um Espírito Santo materializado não em pomba, mas em ave tropical. Para o narrador, Geoffrey Braithwaite, médico inglês obcecado por Gustave Flaubert, algo que poderia não ser mais do que um fait-divers, torna-se no elo de ligação com o autor e numa pista que o conduz na busca da sua biografia, a verdadeira biografia, não a perpetuada pela tradição e pelos escritos académicos.
Braithwaite odeia críticos literários, – e escreve-o com todas as letras, pouco antes de narrar o caso do exagerado (e inexacto) enfoque de uma especialista em Flaubert na variação cromática dos olhos de Emma Bovary, descritos tanto como sendo azuis, como verdes ou até negros – mas Braithwaite não deixa de ser um. Braithwaite ou Barnes? A confusão/identificação entre os objectivos do narrador e do autor é central neste romance que, numa certa perspectiva, pode até ser confundido com um ensaio de crítica literária cujo objecto é Flaubert, vida e obra, ou melhor, a vida inspirando a obra, ou até, talvez, a obra narrando a vida. Essa ponte é estabelecida por meio de elementos materiais. Não é só o papagaio, mas também o camelo, o cão, o urso (vide o capítulo dedicado ao bestiário de Gourstave). Há ainda o comboio, essencial na relação amorosa de Flaubert com Louise Colet, e a carruagem: “Em Paris, Flaubert usou uma carruagem fechada para não ser visto e presumivelmente seduzido por Louise Colet. Em Rouen, Léon usa uma carruagem fechada para seduzir Emma Bovary. Em Hamburgo, um ano após a publicação de Madame Bovary, podia-se alugar as carruagens para fins sexuais; eram conhecidas por Bovarys.” (p. 204). E há as mulheres. Louise Colet ou Madame Bovary? Descubra as diferenças.
Félicité tinha um papagaio. Flaubert pedira emprestado ao museu um papagaio (Inspiração?!). Será verdade? Mais: até que ponto a verdade não é só uma questão de perspectiva? Num dos capítulos iniciais, Braithwaite apresenta duas cronologias biográficas de Flaubert. No fundo, nenhuma é ficcional. Porém, não deixam de ser contraditórias. Se numa o escritor morre cheio de honrarias e admirado por todos, noutra a morte encontra-o solitário e anónimo. Uma terceira cronologia é composta por citações do próprio Flaubert. Conclusão: “Pode definir-se uma rede de duas maneiras, dependendo do ponto de vista. De um modo geral, diz-se que é um instrumento com buracos destinado a apanhar peixe. Mas podemos, sem agredir muito a lógica, inverter a imagem e definir uma rede como a fez uma vez um lexicógrafo brincalhão: um conjunto de buracos ligados por um fio.” (p. 39).
Conseguirá Braithwaite encontrar o verdadeiro Flaubert? A resposta parece ser previsível, mas garanto-vos que vale bem a leitura.

A. Zamperini

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