quinta-feira, 11 de abril de 2013

Anna Karénina - A Arte do Desencantamento


Título: Anna Karénina
Autor: Lev Tolstoi
Editora: Relógio D'Água (Dezembro de 2006)
Páginas: 832


«Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.» Assim somos introduzidos no universo de uma das obras mais aclamadas da literatura mundial: atraídos para a plasticidade das convenções sociais que se espelham enquanto paradigmas rígidos, mas entrevendo a sombra da queda dos mesmos. Quando a liberdade humana cede perante o poder das aparências, a vida perde a luz que, outrora, a insuflara, sendo a realidade delapidada e reduzida a traços enganadores que, apesar de provirem de uma técnica precisa de mestre, não respira. Tal é a fatal expectativa de viver que percorre as páginas deste romance, onde, apesar de todo este ambiente assombrar as personagens que nele vivem, nos é dado a vislumbrar o brilho da esperança.


A linha central que tece a narrativa de Anna Karénina é a relação adúltera desta com Vronsky e as consequências que dela advêm, desvendando a condição da mulher na sociedade russa no século XIX. A partir deste ponto nefrálgico desenrola-se a vida de várias personagens envolvidas nesta frágil teia de relações, todas cunhadas perante as exigências sociais: o instável casamento de Stiva e Dolly Oblonsky, que, apesar da traição e da necessidade de manter as aparências, é regido por uma felicidade frágil na fronteira entre a genuinidade do amor pelo valor da família e a falsidade a que a convenção obriga; os encontros e desencontros entre Lévin e Kity, cujo amor inocente evolui na recriação de ambas as personagens, que se moldam uma à outra, encontrando-se numa busca pela felicidade e pela sentido da própria vida; a solidão santificada de Alexei Alexandrovich, cujo amor à rectidão social camufla um vazio interior com a mentira, sendo a sua vida abalada pela separação de Anna, e perante a necessidade de se reencontrar e rever no seu filho, Serioja; o final da vida de Nikolai, irmão de Lévin, cuja dedicação aos seus ideais políticos o afastaram da sociedade, desprendendo-se totalmente do expectável para se afirmar, sendo esta liberdade proclamada através da sua relação com uma ex-prostituta e, finalmente, a labuta interminável dos mujiques e do seu árduo cansaço diário no trabalho que lhes serve de redenção, acordando-os para o gosto de viver. Todas estas linhas, e outras mais, se cruzam nesta história onde, apesar de tudo parecer condenado a viver somente nas entrelinhas da convenção, vai explodindo perante o inconformismo e a vontade autêntica de viver.
Dentro destas histórias, vários temas são retratados, estando todos relacionados pelo desejo comum de o ser humano se superar a si mesmo e deixar de sobreviver, vivendo plenamente, como lamenta Karénina: «Eu não vivo, estou à espera de um desenlace sempre adiado.» Esta ânsia de viver é partilhada por todos os personagens, que vivem sob o filtro social e o medo de respirar livremente. Esta questão da condição humana possui diversas faces ao longo das páginas, espelhando-se no temor interior pelo não reconhecimento do próprio «Eu»; no debate interno entre a contradição de querer ser livre e o medo simultâneo das consequências de o ser; na busca incansável por um ser superior que dê significado à existência humana, mas cuja irracionalidade desafia a realidade alcançada pelo Homem; na disparidade entre o trabalho físico, do campo, cujo cansaço limpa a alma, e o trabalho mecânico dos escritórios da cidade, onde ninguém sabe ao certo o que faz, apesar de se lhe ser reconhecido um estatuto superior; no debate intenso entre o parecer e ser, que, na viagem de Vronsky ao tentar ser pintor se destaca na impossibilidade de este não conseguir ultrapassar a mera técnica, deixando os seus quadros sem vida; no florescimento do sentimento implacável do amor irracional, que leva a acções desmesuradas, culminando na separação entre mãe e filho, que destaca a impotência da mulher poder ser ela mesma perante a sociedade, sem se perder de traços marcantes da sua existência. Estas são apenas algumas formas através das quais Tolstoi desnuda a alma humana e a sua fragilidade.
Recentemente, esta obra-prima da literatura foi adaptada para o grande ecrã através da arte de Joe Wright. Normalmente, quando vemos no cinema a adaptação de um livro tão forte como este, pensamos sempre que aquele não lhe chega aos calcanhares. Contudo, neste caso, o realizador teve o engenho de recriar o universo de Anna Karénina de forma muito original, focando-se na plasticidade da sociedade russa da época, colocando as acções das personagens num palco de teatro, onde a existência é encenada, sendo submersa na insegurança de viver fora de cena. O filme retrata uma faceta acutilante do livro, centrando-se nesse propósito e não se perdendo pelos inúmeros caminhos que podem ser percorridos ao ler Anna Karénina

K. Dalloway


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