terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Lorca

Estou a meio de um livro (quem não está?!). Talvez fique para um próximo post. Agora, perante a dúvida sobre o que escrever, olho a cidade pela janela da cozinha, antes de fixar os meus olhos na estante e procurar por uma lombada mais saliente que me recorde leituras passadas.
A chuva insiste em cair, mansa mas persistente, e o frio gela as mãos. A estante oferece-me Federico García Lorca. Irónico, pois. Se quiséssemos dividir poetas por estações do ano, Lorca não seria decerto um poeta de Inverno. Ele é os quarenta graus do Agosto andaluz, lua sobre o Guadalquivir, corridas de touros, sangue na arena, coragem e revolta, amor e morte.


Federico García Lorca, Antologia Poética.
Selecção, tradução, prólogo e notas de
José Bento, Lisboa, Relógio d'Água, 1993.




Às cinco horas da tarde.
Eram as cinco em ponto da tarde.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Uma ceira de cal já preparada
às cinco horas da tarde.
Tudo o mais era morte, apenas morte
às cinco horas da tarde.




Mas cedo ao apelo da estante. Hoje é dia de Lorca e aconselho a Antologia Poética editada em 1993 pela Relógio d'Água, com selecção, tradução e prólogo de José Bento. Uma edição bilingue, evitando assim tudo o que se perde com a tradução, sobretudo num género como é a poesia. Esta antologia reúne poemas de Canciones, Romancero Gitano, Poema del Cante Jondo, Llanto por Ignacio Sánchez, Diván del Tamarit e Poeta en Nueva York.
Fixo-me nos poemas deste último livro, até porque a chuva e o frio levam-me mais depressa à Grande Maçã do que às laranjas de Granada. Entre 1929 e 1930, Lorca frequenta a Columbia University. Mas, então, não é Nova Iorque que chega à poesia de Lorca. É Lorca, o andaluz, que invade a cidade que não dorme.


Cidade sem sono
(Nocturno da Brooklyn Bridge)

Não dorme ninguém.
As criaturas da lua cheiram e rondam as choupanas.
Virão as iguanas vivas morder os homens que não sonham
e o que foge com o coração partido encontrará pelas esquinas
o incrível crocodilo quieto sob o terno protesto dos astros.

Não dorme ninguém.
Há um morto no cemitério mais longínquo
que se queixa três anos
porque tem uma paisagem seca no joelho
e o menino que enterraram esta manhã chorava tanto
que foi preciso chamar os cães para que se calasse.

Caímos pelas escadas para comer a terra húmida
ou subimos ao gume da neve com o coro das dálias mortas.
Mas não há esquecimento nem sonho:
carne viva. Os beijos atam as bocas
num emaranhado de veias recentes
e a quem dói a sua dor doerá sem descanso
e o que teme a morte tem de levá-la sobre os ombros.

Um dia
os cavalos viverão nas tabernas
e as formigas furiosas
atacarão os céus amarelos que se refugiam nos olhos das vacas.
Outro dia
veremos a ressurreição das mariposas dissecadas
e ainda, ao percorrer uma paisagem de esponjas cinzentas e barcos mudos,
veremos brilhar o nosso anel e brotar rosas de nossa língua.

Aos que guardam ainda pegadas de garra e aguaceiro,
àquele rapaz que chora porque não sabe a invenção da ponte
ou àquele morto que já não tem mais que a cabeça e um sapato,
há que levá-los ao muro onde iguanas e serpentes esperam,
onde espera a dentadura do urso,
onde espera a mão mumificada do menino
e a pele do camelo se eriça com um violento calafrio azul.

Não dorme ninguém.
Mas se alguém fecha os olhos,
açoitai-o, meus filhos, açoitai-o!
Haja um panorama de olhos abertos
e amargas chagas acesas.
Não dorme ninguém no mundo. Ninguém, ninguém.
Já disse.
Não dorme ninguém.
Mas se alguém de noite tem excesso de musgo nas têmporas,
abri os alçapões para que veja sob a lua
as falsas taças, o veneno e a caveira dos teatros.
Não dorme ninguém no céu. Ninguém. Ninguém.
Não dorme ninguém no mundo. Ninguém. Ninguém.
A vida não é sonho. Alerta! Alerta! Alerta!
Um dia
Alerta! Alerta! Alerta!
Não dorme ninguém no céu. Ninguém, ninguém.
A. Zamperini

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