terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Insónias

Todos nós já tivemos uma (ou várias) daquelas noites em que não conseguimos pregar o olho por mais carneiros que contemos e chávenas de leite morno pela garganta abaixo. Ficamos na cama, volta após volta, à espera que o sono chegue. Podemos sair do vale dos lençóis para a sala, ligar a televisão e assistir às tele-vendas, ou buscar aquele livro que, já sabemos, ao fim de página e meia é bochecho certo. Mas todos os esforços são inglórios e continuamos acordados até à chegada dos primeiros raios do sol por entre as persianas.
Paul Auster, Homem na Escuridão,
Lisboa, Asa, 2008
(tit. orig. Man in the Dark, 2008) 
Para August Brill, essas noites são uma constante. Na escuridão do quarto, enquanto a filha e a neta dormem (ou talvez não...) no andar de cima, este escritor magoado pelos anos e por um acidente que lhe tirou a autonomia, já não desespera na espera do sono: "Deixo-me ficar deitado na cama e conto-me histórias". 
A história que Brill conta a si mesmo é a de uma América fragmentada pela guerra civil após as eleições presidenciais de 2000. Owen Brick, o herói, acorda num buraco sem saber onde está, como ali chegou e, muito menos, quem realmente é neste mundo paralelo. Mais tarde, um dilema: matar ou morrer.
Parece o enredo de um filme de acção, mas este filme apenas é visionado na cabeça de Brill, afastando a escuridão e, sobretudo, a dor que encheu a casa após uma série de infortúnios. Porém, a terapia auto-administrada não resulta como o esperado: através de Brick, Brill não consegue esquecer tudo aquilo que lhe tira o sono; ou melhor, Brick acaba por tornar a memória de Brill ainda mais viva e o passado, com os bons e os maus momentos, cada vez mais presente.
Ainda há outros filmes a passar, e estes não na cabeça de Brill. Nalgumas noites, o escritor partilha a insónia com a neta Katya, que abandonou o curso de cinema após a trágica morte do namorado. Ela e o avô enchem as noites com filmes, DVD após DVD, de Renoir a Ozu (ver a comovente análise de Brill a uma das últimas cenas de Viagem a Tóquio). Mas estes também contam muito mais do que as suas próprias histórias. Neta e avô partilham as mesmas contradições da terapia adoptada.
"O real e o imaginado são um só. Os pensamentos são reais, mesmo quando pensamos em coisas irreais. Estrelas visíveis, céu invisível. O som da minha respiração, o som da respiração de Katya. Orações antes de adormecer, os rituais da infância, a gravidade da infância. Se eu morrer antes de acordar. Com que rapidez tudo se vai. Ontem uma criança, hoje um velho e, desde então até agora, quantas batidas de coração, quantos movimentos respiratórios, quantas palavras ditas e ouvidas? Alguém que toque em mim. Põe a tua mão no meu rosto e fala comigo." (pp. 157-158)
A. Zamperini

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