quinta-feira, 16 de maio de 2013

O valor insaciável do suor





Título: O Sol dos Scorta
Autor: Laurent Gaudé
Editora: ASA Edições (Setembro de 2005)
Páginas: 224

A indelével maldição da sede, a necessidade de construir incessantemente um mundo feito à nossa imagem, a força nefrálgica da loucura, da obsessão por destruir todos os traços que nos rodeiam para que, através das suas cinzas, se tornem nossos, a fome eterna que habita cada um perante o desafio de viver, insufla a existência autêntica de cada um. A maldição dos Scorta é a prova de que a humanidade persiste, que suar é a única forma de o homem se superar e de se reencontrar com o apelo visceral da terra.



Recebi O Sol dos Scorta, das mãos de um familiar, quando terminei a minha licenciatura. O livro não era novo, já tinha sido lido e folheado por outrem, outros olhos já o tinham percorrido e meditado, deixando bem claro que aquelas páginas possuíam vida própria. Estando eu a iniciar um novo capítulo na minha vida, não o poderia ter lido em melhor hora: também eu me encontrava numa nova encruzilhada e possuía uma sede insaciável por começar a desbravar o meu próprio caminho. Naquelas páginas foram-me apresentadas quatro gerações dos Scorta e, com cada uma, aprendi o autêntico valor do suor.

Todo o tempo é desenhado através de partidas que se desenrolam, inexoravelmente, em chegadas. Também assim começa a história dos Scorta, quando, num dia quente, Luciano Mascalzone regressa à sua terra natal, após vários anos de prisão, para se apoderar finalmente daquilo que alimentara a sua loucura. O retorno às raízes incita o impulso primordial de satisfazer a obsessão que impulsiona a vida; todos existimos projectados para o futuro, nessa fronteira do porvir, com os olhos fitos nesse ponto almejado que alimenta a nossa sede, sendo o presente apenas o meio, a construção que nos aproxima dessa visão a cada passo. Com a sede saciada, a origem dos Scorta chega ao seu fim sobre as pedras quentes que serão o palco da sobrevivência de todas as suas gerações vindouras: a aldeia de Montepuccio. Nesse espaço, decorre a história dos Scorta, iniciada pela loucura de Rocco (filho de Luciano), que através da tirania ergue um império que, no fim da vida, devolve ao povo da terra para se redimir, dando a oportunidade aos seus filhos de começarem do zero. É aqui que respiramos o suor da sua descendência, Domenico, Giuseppe e Carmela, que adoptam o jovem Raffaele como Scorta, mostrando que a família transcende o sangue. Erguem-se do zero através da cumplicidade que os une, trabalhando dia e noite para alcançarem o seu lugar, firmando mais uma vez a importância de se ser um Scorta. Aquela aldeia no Sul de Itália ganha vida e desempenha um papel activo na existência daqueles que preenchem o seu vazio, contornando a fantasia com a pura realidade da labuta diária, persistindo em construir de raiz, com o próprio suor, o motor da maldição a que se encontram destinados. É nos meandros deste constante cansaço que se desenha a felicidade, no convívio e no riso dos que amamos, na humildade de uma refeição partilhada, na paz momentânea de descanso à sombra de uma oliveira, no acto simples de contar histórias a alguém e partilhar fragmentos de vida, distinguindo-nos dos animais. É também nesses instantes que se vive a intensidade da relação entre os Scorta e a igreja, sempre em constante tensão, assim como com todos os habitantes. Contudo, em ambos os momentos, o esforço é uma constante, sendo o sinal de um autêntico saborear da existência: «É preciso aproveitar o suor […]. Depois, acaba tudo muito depressa, acredita em mim.»
Novas gerações de Scorta erguem-se, sempre movidas pela maldição da consciência de que a vida tem de ser construída, sempre retornando à raiz e erigindo impérios do nada. A loucura dos Scorta é a sabedoria de que nada vale a pena sem ser saboreado na plenitude do suor e de que a autêntica existência se manifesta nos instantes da realidade que se move sempre como o pó da terra.


K. Dalloway

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