Numa esquina perto de Notre Dame, no fundo de uma rua
coberta por plásticos que denunciam o suor recente do restauro, podemos
encontrar uma livraria diferente. Qualquer amante de livros se irá perder neste
pequeno cantinho, onde encontrará santuário. Ao contrário da maioria das
livrarias que visitamos, feitas para vender e despachar o produto o mais
depressa possível, aqui deparamo-nos com pessoas que devotam a sua vida aos
livros e à arte de ler. Cada centímetro da loja está preenchido por objectos e
memórias literárias: papéis, cadernos, rabiscos, capas, marcadores, máquinas de
escrever, pianos com pautas inacabadas, posters de lançamentos de livros,
rascunhos, mensagens, ilustrações… A principal presença pertence aos livros,
que crescem por todo lado, reivindicando o seu domínio, o seu direito a serem
venerados. Mas também a serem lidos, revistos, percorridos pelos olhos de cada
leitor (que, aliás, é aquele que o insufla com vida).
Logo na rua, à entrada, encontramos estantes com livros em
segunda mão, que já preencheram as horas de outrem e que agora se abrem
novamente, ao humilde olhar do novo aventureiro. Ficamos expectantes, sentimos
mesmo um frémito nervoso na ponta dos dedos quando os percorremos, procurando o
eleito, aquele que iremos reivindicar. Quando o encontramos, sentimos que o
universo está alinhado e é com esse conforto que entramos dentro da loja, para
nos maravilharmos em estupefacção: existem estantes do chão ao tecto, ao longo
de todo o estabelecimento. Mais: ali estão concentradas todo o tipo de
publicações – de livros de bolso a edições de luxo (quase que conseguimos
vislumbrar à nossa frente a história da edição de determinado título,
acompanhando as preferências pontuais que ditam os diferentes matizes da arte
de ler). Mesmo subindo escadas, os livros perseguem-nos em cada degrau, a cada
passo, sendo acompanhados por caricaturas de autores conhecidos, ilustrações
dos livros infantis mais populares, de post-its e papeis rasgados com notas de
autores e citações que nos preenchem com a certeza do nosso amor pelo universo
dos livros.
Toda a loja continua, intercalando divisões entre os
livros que estão à venda e outros que se encontram disponíveis para leitura nos
sofás que se assomam conforme exploramos este incrível ser feito de páginas
soltas e memórias. Encontramos a cama do ocioso escritor, cuja inércia esconde
a mais plena forma de vida, preenchida por aventuras e provações. Os livros são
percorridos pela sombra dessa melancolia letárgica, mas transparecem em
simultâneo o cansaço da descoberta e a alegria dos conquistadores. Assim como
esta loja, todos os livros possuem essa magia de nos transportarem para
universos paralelos, que nos resgatam da banalidade e da letargia.
No coração de Paris, esta loja que abriga livros em inglês
é a prova viva de que a literatura pode quebrar todas as barreiras, pois, como
encontramos escrito num papel rasgado, colado num dos degraus da escada que nos
transporta para o piso superior, o grande desafio da escrita é «to write about real things magically»
(Raymond Chandler).
K. Dalloway
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