Julian Barnes, O papagaio de Flaubert, Lisboa, Quetzal, 1988 [ed.
original: Flaubert’s Parrot, Londres, Jonathan Cape, 1984]
Tudo começa com um papagaio embalsamado num museu em Ruão. Dizem que
esteve na mesa de Flaubert enquanto ele escrevia Un coeur simple, conto
sobre Felicité, uma criada que concentra os seus afectos e a sua fé em Lulu, um
Espírito Santo materializado não em pomba, mas em ave tropical. Para o
narrador, Geoffrey Braithwaite, médico inglês obcecado por Gustave Flaubert,
algo que poderia não ser mais do que um fait-divers, torna-se no elo de
ligação com o autor e numa pista que o conduz na busca da sua biografia, a
verdadeira biografia, não a perpetuada pela tradição e pelos escritos
académicos.
Braithwaite odeia críticos literários, – e escreve-o com todas as letras,
pouco antes de narrar o caso do exagerado (e inexacto) enfoque de uma
especialista em Flaubert na variação cromática dos olhos de Emma Bovary,
descritos tanto como sendo azuis, como verdes ou até negros – mas Braithwaite
não deixa de ser um. Braithwaite ou Barnes? A confusão/identificação entre os
objectivos do narrador e do autor é central neste romance que, numa certa perspectiva,
pode até ser confundido com um ensaio de crítica literária cujo objecto é
Flaubert, vida e obra, ou melhor, a vida inspirando a obra, ou até, talvez, a
obra narrando a vida. Essa ponte é estabelecida por meio de elementos
materiais. Não é só o papagaio, mas também o camelo, o cão, o urso (vide o
capítulo dedicado ao bestiário de Gourstave). Há ainda o comboio,
essencial na relação amorosa de Flaubert com Louise Colet, e a carruagem: “Em
Paris, Flaubert usou uma carruagem fechada para não ser visto e presumivelmente
seduzido por Louise Colet. Em Rouen, Léon usa uma carruagem fechada para
seduzir Emma Bovary. Em Hamburgo, um ano após a publicação de Madame Bovary,
podia-se alugar as carruagens para fins sexuais; eram conhecidas por Bovarys.”
(p. 204). E há as mulheres. Louise Colet ou Madame Bovary? Descubra as
diferenças.
Félicité tinha um papagaio. Flaubert pedira emprestado ao museu um
papagaio (Inspiração?!). Será verdade? Mais: até que ponto a verdade não é só
uma questão de perspectiva? Num dos capítulos iniciais, Braithwaite apresenta
duas cronologias biográficas de Flaubert. No fundo, nenhuma é ficcional. Porém,
não deixam de ser contraditórias. Se numa o escritor morre cheio de honrarias e
admirado por todos, noutra a morte encontra-o solitário e anónimo. Uma terceira
cronologia é composta por citações do próprio Flaubert. Conclusão: “Pode
definir-se uma rede de duas maneiras, dependendo do ponto de vista. De um modo
geral, diz-se que é um instrumento com buracos destinado a apanhar peixe. Mas
podemos, sem agredir muito a lógica, inverter a imagem e definir uma rede como
a fez uma vez um lexicógrafo brincalhão: um conjunto de buracos ligados por um
fio.” (p. 39).
Conseguirá Braithwaite encontrar o verdadeiro
Flaubert? A resposta parece ser previsível, mas garanto-vos que vale bem a
leitura.
A. Zamperini
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