Título: Dança, Dança, Dança
Autor: Haruki Murakami
Editora: Casa das Letras (Novembro de 2007)
Páginas: 480
Apesar de sermos, aparentemente, meros espectadores
impotentes perante o fluir dos acontecimentos que marcam a passagem da vida,
podemos sempre, inexplicavelmente, dançar, dançar, dançar e transformar o mundo
através da liberdade de interpretação que a inconsciência desse mesmo movimento
permite. Os acontecimentos que permeiam a vida estão aí, materializam-se e, por
mais inesperados ou absurdos que sejam, existem para ser vividos. A única coisa
que nos pode salvar de experienciar a nossa existência de forma passiva é
acompanhá-la, reinterpretá-la aos nossos olhos, dançar.
Nas páginas de Dança, Dança, Dança voltamos a encontrar-nos
com o personagem principal de Em busca do
Carneiro Selvagem, um escritor freelancer¸
autodenominado de «limpa-neve cultural», que é contratado por um magnata para
iniciar uma viagem metafísica na busca de um carneiro. Ao longo dessa epopeia,
o nosso personagem sem nome perde-se da sua namorada, Kiki, uma misteriosa call girl com umas orelhas muito
especiais. Esta nova aventura começa quando decide procurá-la e voltar ao Hotel
Golfinho, local indicado por ela no livro anterior. Mas tudo muda, o tempo
avança incessantemente e arrasa qualquer desejo de usufruto do presente, assim
como o antigo e acolhedor hotel, que agora está transformado num grande
empreendimento de luxo; o passado fora completamente apagado. Contudo, certas
coisas deixam o seu rastro, uma determinada ambiência, portas entre mundos
paralelos que desvelam caminhos alternativos (ou não estaríamos nós num romance
de Murakami). É nesta brecha entre a realidade e o sonho que o nosso personagem
se reencontra com o Homem Carneiro e trava amizade com Yumiyoshi, uma
recepcionista que o envolve desde o princípio; conhece Yuki, uma rapariga de
treze anos com uma sensibilidade especial e reencontra Gotanda, um antigo
colega de escola que agora é um famoso actor dividido entre os papéis
desempenhados e a sua própria personalidade. A partir destas personagens
centrais, outras se juntam a este círculo misterioso, onde uma organização de
prostituição de luxo está no epicentro do desaparecimento de algumas call girls, e tragédias inesperadas
assolam a vida dos envolvidos, conscientemente ou não, nesta epopeia pela busca
de Kiki.
O personagem
principal já não se reconhece, tendo perdido fragmentos de si mesmo em
acontecimentos passados que o desgastaram, por isso este romance centra-se num
momento de fronteira; uma atitude tem de ser tomada e o único conselho dado pelo
Homem Carneiro é: «dançar […] Enquanto houver música, deves continuar sempre a
dançar. Não perguntes porquê.» É desta forma que Murakami dá forma ao
sentimento de impotência perante a vida, aquele frio que nos percorre quando
pensamos demasiado sobre os acontecimentos que mudam o rumo do expectável. Numa
sociedade onde até a prestação de serviços sexuais pode ser considerada nos
impostos, o absurdo adquire linhas ténues que se misturam com a realidade. Este
mundo ao contrário não possui um caminho único, antes tendo prismas diferentes
que, muitas vezes, se contradizem, criando um sentido de impossibilidade. Dança, Dança, Dança mostra-nos que essas
irregularidades da realidade têm de ser abraçadas e vividas. A amizade entre um
adulto e uma menina pode ser o caminho para que ambos se conheçam a si mesmos,
o «eu» através do «outro»; assim como um maneta pode fazer as mais deliciosas
sanduíches, também uma excêntrica fotógrafa pode captar a essência inerente à
simplicidade de existir; o amor é possível, transforma-nos através de formas
inesperadas e tem o poder de nos salvar. Temos é de saber reconhecê-lo,
abraça-lo na sua forma mais pura, desprovida de raciocínio. Para tal, só temos
de dançar.
K. Dalloway
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