Título: O Sol dos Scorta
Autor: Laurent Gaudé
Editora: ASA Edições (Setembro de 2005)
Páginas: 224
A indelével maldição
da sede, a necessidade de construir incessantemente um mundo feito à nossa
imagem, a força nefrálgica da loucura, da obsessão por destruir todos os traços
que nos rodeiam para que, através das suas cinzas, se tornem nossos, a fome
eterna que habita cada um perante o desafio de viver, insufla a existência
autêntica de cada um. A maldição dos Scorta é a prova de que a humanidade
persiste, que suar é a única forma de o homem se superar e de se reencontrar
com o apelo visceral da terra.
Recebi
O Sol
dos Scorta, das mãos de um familiar, quando
terminei a minha licenciatura. O livro não era novo, já tinha sido lido e
folheado por outrem, outros olhos já o tinham percorrido e meditado, deixando
bem claro que aquelas páginas possuíam vida própria. Estando eu a iniciar um
novo capítulo na minha vida, não o poderia ter lido em melhor hora: também eu
me encontrava numa nova encruzilhada e possuía uma sede insaciável por começar
a desbravar o meu próprio caminho. Naquelas páginas foram-me apresentadas
quatro gerações dos Scorta e, com cada uma, aprendi o autêntico valor do suor.
Todo
o tempo é desenhado através de partidas que se desenrolam, inexoravelmente, em
chegadas. Também assim começa a história dos Scorta, quando, num dia quente, Luciano
Mascalzone regressa à sua terra natal, após vários anos de prisão, para se
apoderar finalmente daquilo que alimentara a sua loucura. O retorno às raízes
incita o impulso primordial de satisfazer a obsessão que impulsiona a vida;
todos existimos projectados para o futuro, nessa fronteira do porvir, com os
olhos fitos nesse ponto almejado que alimenta a nossa sede, sendo o presente
apenas o meio, a construção que nos aproxima dessa visão a cada passo. Com a
sede saciada, a origem dos Scorta chega ao seu fim sobre as pedras quentes que
serão o palco da sobrevivência de todas as suas gerações vindouras: a aldeia de
Montepuccio. Nesse espaço, decorre a história dos Scorta, iniciada pela loucura
de Rocco (filho de Luciano), que através da tirania ergue um império que, no
fim da vida, devolve ao povo da terra para se redimir, dando a oportunidade aos
seus filhos de começarem do zero. É aqui que respiramos o suor da sua
descendência, Domenico, Giuseppe e Carmela, que adoptam o jovem Raffaele como
Scorta, mostrando que a família transcende o sangue. Erguem-se do zero através da
cumplicidade que os une, trabalhando dia e noite para alcançarem o seu lugar,
firmando mais uma vez a importância de se ser um Scorta. Aquela aldeia no Sul
de Itália ganha vida e desempenha um papel activo na existência daqueles que
preenchem o seu vazio, contornando a fantasia com a pura realidade da labuta
diária, persistindo em construir de raiz, com o próprio suor, o motor da
maldição a que se encontram destinados. É nos meandros deste constante cansaço
que se desenha a felicidade, no convívio e no riso dos que amamos, na humildade
de uma refeição partilhada, na paz momentânea de descanso à sombra de uma
oliveira, no acto simples de contar histórias a alguém e partilhar fragmentos
de vida, distinguindo-nos dos animais. É também nesses instantes que se vive a
intensidade da relação entre os Scorta e a igreja, sempre em constante tensão,
assim como com todos os habitantes. Contudo, em ambos os momentos, o esforço é
uma constante, sendo o sinal de um autêntico saborear da existência: «É preciso
aproveitar o suor […]. Depois, acaba tudo muito depressa, acredita em mim.»
Novas
gerações de Scorta erguem-se, sempre movidas pela maldição da consciência de
que a vida tem de ser construída, sempre retornando à raiz e erigindo impérios
do nada. A loucura dos Scorta é a sabedoria de que nada vale a pena sem ser
saboreado na plenitude do suor e de que a autêntica existência se manifesta nos
instantes da realidade que se move sempre como o pó da terra.
K. Dalloway
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