Quando, perante o ritmo linear e inerte do encadeamento
dos acontecimentos, o homem sente o absurdo visceral do caminho da evolução, a
fluidez do tempo reinventa-se, erguendo-se numa alternativa, espelhando-se numa
outra temporalidade. Perante o esgotamento do ritmo da humanidade, o compasso
enlaça um novo paradigma, uma nova historicidade: o clássico abismo
aristotélico entre poesia e história é abalado, unindo-se num jogo de sombras
onde a realidade reencontra a narrativa, ludibriando a torrente de
acontecimentos com a subjectividade íntima da relação do eu com o outro. O peso da
maldição da história cai sobre si mesmo e, lá do alto, surge uma verdade que
muda o rumo de todos os acontecimentos, entrelaçando passado, presente e futuro
com o peso da escolha de uma outra idade.
Título: O Homem do Castelo Alto
Autor: Philip K. Dick
Editora: Saída de Emergência (Outubro de 2010)
Páginas: 288
O Homem do Castelo Alto apresenta-nos um universo distópico, no
qual as forças do Eixo saíram vitoriosas da Segunda Guerra Mundial. Em 1962, 17
anos após o conflito, o planeta encontra-se dividido entre duas superpotências:
o Japão e a Alemanha. Os ideais do mundo que conhecemos ruíram, dando lugar a
uma nova realidade, legitimada por uma história, por toda uma nova ordem social
(uma hierarquia de categorias) e uma teia de costumes enraizada neste plano
alternativo. As experiências nazis prosseguiram, dizimando raças, impondo o seu
império, criando uma Guerra Fria com a parte Japonesa, tolerando-a pela sua
preciosa ajuda através do massacre que determinou a divisão do mundo: o sucesso
de Pearl Harbor. Neste mundo novo, o avanço da tecnologia diverge da marcha que
conhecemos (a televisão, por exemplo, aparece depois de o homem explorar outros
planetas), sendo mais valorizado o artefacto raro do que a produção em massa
(condenada pelo seu carácter banal, desprovido de historicidade). Neste
sentido, a criação de objectos novos e autênticos é vista como uma banalidade,
desprovida do peso da história, em desarmonia com o universo, sendo a sua
concretização percepcionada como um momento de ruptura do paradigma: é neste
ponto que o espírito humano se separa da ordem estabelecida para respirar a sua
«verdade interior». Este dom da criação é, para mim, o grito de liberdade deste
livro, onde a vida das personagens se encontra enlaçada com as directrizes do I Ching, o oráculo chinês, seguido por
todos para solucionar todos os problemas. Na verdade, apesar da estruturação
estanque da mentalidade do regime ditatorial, o ser humano rege-se por
profecias e ensinamentos subjectivos; este é o ponto nevrálgico de todo este
universo: o percurso da história é estanque, mas é fonte de interpretação,
sendo a liberdade daqueles que o seguem uma raridade ambígua ̶ os
acontecimentos desenlaçam-se, mas são filtrados pela subjectividade humana,
sendo recriados. Mas, sê-lo-ão na totalidade? Quais os limites que
circunscrevem a história?
Enredados nesta teia de
acontecimentos, conhecemos várias personagens: Robert Childan, proprietário de
uma loja de Antiguidades Americanas, que, conformado à sua categoria e
subjugado à supremacia japonesa, explora o valor do raro; Tagomi, um japonês
com um alto cargo, seu principal cliente, que, após assassinar dois agentes
policiais, coloca tudo em dúvida na loucura da melancolia; Mr. Baynes, um agente
alemão infiltrado que quer avisar Tagomi de um futuro atentado nuclear no
Japão; Frank Frink, um judeu que, inicialmente trabalhando na produção
massificada de imitação de artefactos, se arrisca na criação de peças de ourivesaria
e Juliana Frink, sua ex-mulher, que se envolve com Joe Cinnadella, um agente
contratado para assassinar a voz da semente da dúvida que enlaça todas estas
personagens num caminho comum: o homem do castelo alto, escritor de um livro
que narra uma história alternativa, onde os aliados venceram a Guerra,
intitulado O Gafanhoto Será Um Fardo.
A escolha deste título é uma alusão a uma passagem bíblica sobre a velhice, a
última das idades, onde a vivência da existência ganha novos contornos e aquilo
que outrora parecera fraco e insignificante se torna uma evidência gigante: o
sistema conhecido até então é abalado pela dúvida, caindo todos os paradigmas
em ruína. Este livro dentro do livro (escrito por um livro, o I Ching) constitui esse grito de mudança.
É por isto que o homem do castelo alto, aquele que interpreta, que lê entre as
linhas, é o maior inimigo do conformismo estanque que corrói a existência
humana.
Apesar do oráculo chinês parecer
desprover as personagens da sua autonomia, abre-as à possibilidade de
interpretação e, consequentemente, de criação. De facto, Philip K. Dick dotou
todas as suas personagens de uma autonomia moral inacreditável, que é
experienciada por uma série de decisões particulares que asfixiam as
directrizes da maioria predominante e ditatorial: elas escolhem a sua história,
recriando-a. A historicidade é assim analisada como um conjunto de
acontecimentos, cuja fluidez não é estanque, mas diversa, vista e criada pela
subjectividade humana, que, ao interpretá-la, evidencia a possibilidade da
alternativa, filtrando o eu num outro, num espaço-tempo sem lugar nem idade, na
fronteira entre a verdade e a mentira.
K. Dalloway
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