Enraizado
num universo distópico onde a condição humana é moldada pela ilusão de uma
felicidade material, a verdade cede o seu lugar perante o contentamento de
sobreviver numa letargia química e artificial. O ritmo desmedido do instinto é
domado pela dormência de uma abundância translúcida que inunda a mente daqueles
que nasceram programados para desistirem de si mesmos. Nesta incubadora, todos
os demónios estão adormecidos por drogas que enlaçam aqueles cujo destino já
está traçado muito antes de respirarem pela primeira vez, que constituem a
maquinaria que permeia esta existência inundada por uma felicidade aparente,
que corrói a possibilidade de uma vida sem barreiras.
O Admirável Mundo Novo nasceu como uma resposta à sociedade
distópica de 1984, onde a liberdade é
aprisionada por uma autoridade austera que sufoca a identidade individual de
todos, submersos num universo extremo, permeado de violência. O livro de Orwell
mostra a verdadeira perversidade humana, elevando a um extremo este tipo de
sociedades ditatoriais. Pelo contrário, aquilo que Huxley insiste em afirmar é
que a liberdade humana pode ser (e é) condicionada, desprovida de qualquer
valor, pela dormência da felicidade implantada, sem violência: a aniquilação do espírito crítico e o
contentamento material conseguem suprimir qualquer necessidade anímica do ser
humano. A felicidade em detrimento da sabedoria, o preconceito em detrimento da
ciência, a tecnologia em detrimento da arte, o sorriso em detrimento das
lágrimas, Ford em detrimento de Deus. Eis os ingredientes necessários para uma
sociedade que viva numa paz adormecida.
A história desenrola-se numa sociedade de castas onde cada um
nasce artificialmente (através do método Bokanovsky), sendo condicionado desde
o embrião para acreditar na verdade e legitimidade do Estado que integra. Um
simples processo pode gerar dezenas, e até centenas, de seres humanos, criados
para acreditarem em máximas de estabilidade (incutidas através da sua audição
inconsciente durante o sono), que ensinam a respeitar a ordem social
estratificada e o papel que cada um deve desempenhar. Neste mundo, a tecnologia
suprime todas as necessidades
humanas, fazendo com que os cidadãos sejam tão felizes e satisfeitos com o seu
dia-a-dia que não se questionem. A verdade, assim como tudo, é estandardizada. No
caso de o sofrimento e a preocupação invadirem o espírito de alguém, a Soma,
uma droga, está sempre disponível para afastar demónios e submergi-los no
esquecimento.
Aqui conhecemos Lenina, uma funcionária do Centro de
Condicionamento que, apesar de viver segundo os parâmetros do Estado Mundial,
quebra algumas barreiras, sendo objecto de desejo de muitos homens, com quem
tenta relacionar-se através de frívolas e superficiais relações sexuais (uma
das condutas apoiadas pelo Estado). Numa das suas aventuras com Bernard Marx (alusão
a Karl Marx), um alfa com um sentido de inferioridade acentuado, submerso em
melancolia que o faz colocar em causa alguns preconceitos do seu modo de vida,
conhece um selvagem, John, um homem
que não fora criado num laboratório de produção em massa, mas gerado por uma
mulher, tendo crescido fora dos limites impostos pelo Estado, com a sua mãe,
Linda (uma blasfémia perante os olhos da sociedade). Longe do
condicionamento social, John representa o Bom
Selvagem, o ser humano sem o peso da civilização, sem os limites e
barreiras esmagadoras impostas pelo progresso. Num mundo à parte, descobriu a
obra de Shakespeare e vive imbuído pela sua arte, imerso numa ilusão diferente,
que o levará à paixão por Lenina, cego não pelos preconceitos da sociedade, mas
pela ideia surreal do amor poético. Não estando integrado na sua tribo, pede
aos viajantes para o levarem com a sua mãe para o Estado Mundial, esse Admirável Mundo Novo. Contudo, com a sua
chegada, esse ideal almejado e o desejo de sentido de pertença desmoronam-se perante
uma sociedade baseada na ilusão de uma felicidade material, desprovida de um
Deus (substituído por Ford, o pai da industrialização), onde a doença, a
velhice e o sofrimento não existem, mas também não cedem lugar à liberdade da existência
humana.
Reclamando o seu direito ao sofrimento, após ter perdido a
mãe e sufocado a ilusão amorosa, John inicia o seu caminho para a libertação,
para o despertar do sono profundo da sociedade. Contudo, enfrentará ventos
contrários que se irão esforçar por domar o seu espírito, despedaçando a agulha
da sua bússola.
Conseguirá ele restaurá-la?
Conseguirá ele restaurá-la?
Conseguiremos nós?
K. Dalloway
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