Título: Desespero
Autor: Vladimir Nabokov
Editora: Teorema
Páginas: 234
Que
é o desespero se não uma distorção da nossa relação connosco próprios? Uma
falha de ligação, uma deflexão inconsciente na escolha do inverosímil. É
através da construção de uma realidade imbuída de incerteza e engano que o
autor conversa connosco, ludibriando-nos, mostrando-nos que a aparente
unicidade se desdobra por diferentes, e ilimitados, caminhos. Existimos
revendo-nos no outro, criando e destruindo, «pois a invenção da arte contém
muito mais verdade intrínseca do que a realidade da vida».
É hilariante a forma como
submergimos totalmente no universo criado por Nabokov, focando totalmente a
nossa atenção nas palavras do narrador, como se este se nos estivesse a
dirigir, contando-nos os seus planos e segredos mais profundos. Há uma
intimidade tão desvelada que nos sentimos ofendidos quando percebemos que
estamos a ser ludibriados, manipulados pelas contradições do próprio autor.
Fomos avisados logo de início, mas a consumação da mentira é o método perfeito
para vislumbrarmos o mundo dúplice pelos olhos da demência que permeia todo o
livro.
O narrador é Hermann, um magnata
do chocolate, que encontra o seu duplo num sem-abrigo em Praga, Félix. Toda a
história gira em torno do plano de Hermann em trocar de identidade com Félix,
aproveitando-se da ingenuidade deste para o ludibriar, acabando por
assassiná-lo para receber o seu próprio seguro de vida, roubando a identidade
do vagabundo, desconhecida por todos. Hermann é casado com Lydia, a típica
mulher vã e fútil, facilmente perturbável, que acolhe o seu primo pintor,
Ardalion (com quem parece ter uma relação que ultrapassa os laços familiares e
a do mecenato). O protagonista vive num mundo abastado, orquestrado por
obrigações, mas em eminente declínio devido a problemas financeiros. É assim
que vê a oportunidade de enveredar por uma vida mais livre através da
manipulação do seu duplo, querendo transformar-se num outro, transfigurando
toda a realidade que conhecia até então através do seu plano, premeditando até
o acaso.
O plano desenrola-se e nós
embarcamos nele, imbuídos de desconfiança em relação aos relatos até à última
página, sempre sem saber o que é mentira e o que é verdade, perdendo-nos na
multiplicidade de hipóteses que se desvelam perante o nosso olhar passivo,
também ele querendo saltar para a corrente de acontecimentos para recriar a
realidade, transfigurando-a em arte. Tudo desvanece perante a evidência… será
Félix o duplo de Hermann? É possível encontrarmos o nosso duplo ou é ele uma
mera criação nossa, produto da transfiguração do reflexo? Irá Hermann alcançar
a realidade criada por ele?
O importante, acredito, é aceitar
essa falha na nossa ligação connosco próprios. Afinal, a existência só se
concretiza se ambicionamos por ela: «Mentia como o rouxinol canta, extasiado,
esquecido de mim; regalava-me com a nova harmonia da vida que ia criando.»
K. Dalloway
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