Título: O Músico Cego
Autor: Vladímir Korolenko
Editora: Arbor Litterae (chancela de Estrofes & Versos) - Março de 2010
Páginas: 272
Nem sempre é certo determinar que
ritmo pauta a desmesura que habita a condição humana. A maldição do estrangeiro paira sempre sobre os mais
verdejantes campos e cala o murmúrio do tempo, assombrando, em boa hora, a sua
linearidade. Para entrarmos neste mundo, nesse labirinto eterno de incessantes
desencontros, temos de reinventar o diálogo dos sentidos a cada instante, moldarmo-nos
para nos criarmos. A cegueira mais não é do que o ponto de partida para essa
fantástica epopeia da vida, que, apesar da penumbra da melancolia, ilumina o
ser.
O Músico Cego é um livro fascinante, com uma escrita muito fluida,
que encontra na simplicidade a magia que a literatura encerra ao meditar sobre
questões fundamentais que, transmitidas por outros meios, perderiam a sua
autenticidade. Através da história de Piotr, a personagem principal, que
conhecemos desde o seu nascimento, quando entra no mundo da escuridão, e o
acompanhamos ao longo do seu crescimento, o autor mostra-nos o poder de uma
visão alternativa que, oculta pela ociosidade do olhar, perde a sua importância
no mundo como o conhecemos. Julgado como uma criatura fraca e amputada, é
criado num ambiente de protecção, sempre debaixo da asa da sua mãe e do seu tio,
Maksim. Contudo, no reino das trevas, Piotr encontra outros contornos, navegando
através da criação do seu próprio universo a partir dos sons. O frágil rapaz
cego encontra no som de uma Ucrânia rural as raízes da sua origem, criando um
mundo novo, contrariando todos os versos da sua danação e destruindo todas as
barreiras impostas pelo paradigma da sociedade. A vontade pode destroçar o
descontentamento.
Várias são as temáticas que
percorrem as páginas deste livro, como a possibilidade de o amor poder crescer nos
sítios mais inesperados, a maldição da cegueira na incapacitação do indivíduo,
a ausência de pai, ou os limites do livre-arbítrio perante a predestinação
divina. Mas aquela que mais me prendeu a esta leitura está relacionada com a
música em si, com o seu poder de criar, de erigir mundos e encerrar em si
segredos que não podem ser pronunciados. A música é retratada como um mecanismo
de criação, uma linguagem que excede a técnica e que brota naturalmente da
inexplicável e turva condição humana. Para lá das palavras, da reprodução de
pautas antigas, da técnica mecânica, está o poder da interpretação, do
renascimento. De facto, Piotr destaca-se dos outros músicos de conservatório,
que conhecem todas as teorias e técnicas, por habitar, ele mesmo, o mundo dos
sons, tornando-os seus. O músico cego encarna os sons, insuflando-os de vida,
reinterpretando-os a cada instante, pois, esse sim, é o seu território. E das
trevas emergiu a mais bela melodia.
K. Dalloway